quinta-feira, 10 de outubro de 2019

DE ONDE NUNCA SAÍ - A FUGA DO TIGRE, de Helder Menor















– Espelho meu, espelho meu, há alguma criatura mais feroz do que eu?

O espelho mágico, que não conseguia mentir a ninguém, muito menos ao tigre por quem tinha tanta deferência, disse a verdade:

– Sim tigre, há, fêmea humana... A fêmea humana é a mais feroz e a mais perigosa de todas as criaturas que algum dia deixaram pegadas sobre o chão da terra.

O tigre, por precaução, nesse dia de tempos remotos e mágicos, entrou na mata fechada e aí tem permanecido escondido.

Foi assim no princípio dos tempos, é assim agora e assim será sempre.

...

Sei do que falo.

Posso provar, aconteceu-me a mim e vou contar-vos.

Por volta da mudança do milénio, andando este vosso amigo a vadiar pelo calhau redondo e molhado de mar a que chamamos casa, tive oportunidade de me cruzar com um tigre.

Um tigre dos verdadeiros, um tigre daqueles de quatro patas, enorme, de dentes e garras afiados. Um tigrão de voz de tremor de terra e olhos de mel. Encontrámo-nos os dois em campo aberto, ou melhor, numa clareira da selva. Não estou a falar de um encontro com um tigrito de circo por trás das grades de montar, nem estou a falar num tigre cansado a dormitar na penitenciária de um qualquer jardim zoológico, nem sequer num leopardo atrelado com correntes a dois guarda-costas ucranianos de um milionário excêntrico e pastilhado numa festa de transe. Nada disso. Estou a falar de um tigre em liberdade. Encontrei o tigre na mata mesmo!

Aconteceu-me uma hora depois de nascer do dia, que é a hora em que acontecem as coisas mais importantes. O céu estava já cor de fogo no oriente e ainda azul escuro com estrelas no ocidente. Foi no Parque Natural de Ranthambore, perto da cidade de Sawai Madhopur, no Rajastão, norte da Índia.

Toda a região pertenceu até aos anos quarenta a um daqueles marajás que vivia milionário do seu ofício colonial de lamber o cú aos ingleses e reprimir o seu próprio povo. O Marajá era literal e legalmente dono da terra e, na prática, também era dono das pessoas que por lá viviam. Isto acontecia desde a idade média até à independência.

Da antiga reserva de caça do Marajá, o governo da Índia fez um Parque Natural onde hoje é possível caçar bichos, mas com a máquina fotográfica. Parece que para caçar com espingarda é muito mais caro e é preciso subornar o chefe dos guardas, isto dizem as más línguas, mas eu não me acredito.

Cheguei a Rathambore na camioneta da carreira. Viajava com uma mochila, uma garrafa de vinho do porto, uma navalha e uma mulher.

A minha companheira de viagem, não estava tão recetiva à ideia de conhecer tão profundamente a Índia quanto eu estava... E de bicharada, chegava-lhe vê-los na televisão. Cansados de uma viagem de doze horas pelas poeirentas estradas indianas, alojámo-nos numa tenda alugada nas traseiras de um armazém no meio da selva. O armazém que alugava tendas, tinha um muro alto e amarelo encostado à estrada, por trás e dos lados era a própria selva que delimitava o espaço. Dentro do perímetro, havia uma espécie de esplanada onde serviam refeições, uns balneários e uma casa de madeira que servia de receção. Na fachada, umas letras amarelas e verdes a dizer Eco Hotel Camping Resort, ao lado das letras a cabeça do tigre do Sandokan. Depois de chegarmos e formalmente nos registarmos, coisa que apesar de sermos os únicos, ainda demorou uma boa hora, usámos as latrinas que até estavam aceitavelmente limpas. Como não havia Internet para mandar notícias para casa, lavámo-nos, comemos e fomos dormir. No outro dia, era preciso acordar de madrugada alta para ver os tigres.

Saímos ainda de noite. Da esquadra policial onde viviam os guardas da reserva, a uns quinze quilómetros dali, veio um jipe de caixa aberta com um motorista e um guarda armado. Subimos e apertámo-nos na lona dos bancos de trás com um casal de belgas carregados com câmaras e aparelhos que davam para equipar um estúdio de Hollywood. Os belgas vinham vestidos de camuflado e lavadinhos de fresco. Nós nem por isso.... Lembro-me que estava frio e não tínhamos tomado banho porque no camping hotel, não tínhamos água quente.

Seguimos por caminhos de terra. Vimos pássaros esquisitos, javalis, veados, texugos e bichos variados cujos nomes não sei dizer. Finalmente, o carro parou à entrada de uma clareira onde um javali chafurdava na lama de um charco. O sol ainda não tinha nascido, mas já se via bem dentro da mata. O guia fardado de caçador e turbante carregou a espingarda em silêncio. Depois falou baixinho numa língua esquisita com o motorista. Para nós, disse baixinho no seu inglês "made in Índia" que tinha carregado a espingarda por precaução e que o tigre do qual seguíamos as pegadas, estava ali escondido, do outro lado, nos arbustos.

O tigre confirmou a conversa do guarda e rugiu.

Um rugido tão forte, grave e profundo que nos deixou a todos paralisados. Incluindo o javali que ficou congelado na poça onde estava.

Um som que nunca vou esquecer.

Os belgas foram os primeiros a reagir, em silêncio, coordenados como uma equipa de natação sincronizada, dispuseram o equipamento para filmar, fotografar e registar o som.

Eu pensei: vou tirar a foto da minha vida para mostrar ao meu puto. O meu filho teria nessa altura uns cinco ou seis anos. A minha máquina fotográfica era daquelas tipo das lojas dos trezentos... sem zoom, nem foco, nem cenas dessas; proporcional às minhas competências enquanto fotógrafo. Procurei aproximar-me. O mais silenciosamente possível, desci do jipe e andei furtivo uns dois metros de máquina na mão.

Silêncio total. Até os pássaros se calaram para ver o que ia acontecer.

E aconteceu. Na selva rebentou uma explosão de violência tremenda. O rugido que soou naquele momento, pode não ter sido tão intenso como o do tigre... Mas veio em elevados decibéis. E falou em português.

-- Porra pá!!! Estou farta disto!!! Venho pr’áqui sem condições nenhumas, dormir numa tenda, sem água quente, a ter de fazer cócó num buraco, comer caril de manhã, à tarde e à noite, a levantar-me a meio da noite, as casas de banho sem energia elétrica, sem poder usar nem a porcaria do secador de cabelo, venho eu para a Índia apanhar frio, frio!!! Sem tomar café, que não bebo um café decente desde que saímos de Lisboa... e, para cúmulo, tu e as tuas cenas! Agora sai-me do jeep para tirar uma fotografia ao Tigre??? Sabes a quantas horas estás do hospital mais próximo? Sabes??? Tou farta das tuas loucuras. Tou farta das tuas merdas!!! Já chega!!! Tou farta. Fartinha! Desculpa lá, mas isto não está a resultar!

Tudo isto, em rajada. Gritado no norte da Índia para ser ouvido no Barreiro. Gesticulado como a senhora que aparece em tamanho pequeno no telejornal, a dar as notícias para os surdos-mudos. 

Segundos depois da feroz criatura se calar, as suas palavras ainda ecoavam no silêncio da selva.

De facto, não estava a resultar.

O tigre não ouviu até ao fim o discurso: foi o primeiro a fugir com o estardalhaço de canas e galhos quebrados.

O javali fugiu a seguir, na direção contrária ao tigre a derrapar na lama.

Os belgas ficaram zangados e ainda tentaram reclamar que lhes tínhamos estragado o filme, mas perceberam pelo olhar que ambos lhes respondemos que mais valia ficarmos todos por ali.

Os guardas do parque, sensatos, arrancaram em silêncio e levaram-nos de volta ao hotel.

Vendo as coisas pela positiva, não só se safou o javali que tinha a folha praticamente feita, mas também se garantiu mais um dia de trabalho e mais rupias aos guardas do parque porque os belgas haviam de voltar no dia seguinte.

Para os meus amigos leitores, o que há aqui de importante a reter é a fuga do tigre. A fuga do tigre prova, definitivamente para todo o sempre, que em termos de bichos perigosos, a mulher é a mais perigosa de todas as feras. Sobretudo se lhe tirarem a bicazinha pela manhã, ou a possibilidade de usar o secador.


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