Foi numa daquelas alturas da
minha vida que tinha tempo, mas não tinha dinheiro. Acontece-me com frequência.
Também com frequência, mas mais raro, também me acontece o contrário, se tenho
dinheiro, não tenho tempo...
Bem, não querendo fazer das
pessoas que têm paciência para me ler, nem meus confessores, nem meus gestores
de conta e, muito menos, meus inquisidores, vou direto ao assunto e contar-vos
daquela vez em que não me deixaram dormir em Santiago. Falo do Galego. O de
Compostela.
Eu tinha 19 anos e acreditava num
universo infinito de possibilidades. Meti um saco-cama e umas latas de sardinha
numa mochila e, num grupo que éramos dois, apanhei o comboio para o norte.
Queria ir ver e viver uns dias numa terra liberta. Uma terra sem regras nem leis,
nem donos, nem chefes. Por isso entrei num comboio daqueles noturnos que saía
de Santa Apolónia pelas onze e chegava quando chegasse.
No outro dia de manhã estávamos
no Porto. Lembro-me que tinha chovido a noite toda e à saída de Campanhã entre
as nuvens o sol brilhou e foi nesse dia que percebi porque é que o Porto é uma
das cidades mais belas que conheço. Ou foi porque o sol brilhou entre as nuvens
ou foi porque tinha dezanove anos e ia de viagem atrás de um sonho. Mas aquela
manhã foi inesquecivelmente bonita.
Vadeámos ao sol pelas ruas antigas e molhadas do Porto. Comprámos comida e voltámos
a entrar noutro comboio já manhã avançada. Atravessámos a ponte férrea sobre o
rio Minho ao entardecer.
Chegámos a Santiago já noite cerrada.
Ano compostense no início dos
noventa e a cidade cheia, cheiinha a abarrotar de turistas religiosos. Padres,
freiras e outros viajantes do mesmo género. Jantámos sardinhas, broa de Avintes
e vinho verde debaixo de um candeeiro de um jardim.
A ideia era apanhar um comboio
regional até Lugo e subirmos às montanhas prometidas. Através de cartas, porque
ainda não havia e-mails nem sms, tinha combinado com uns amigos chegar à aldeia
remota e perdida em que viviam escondidos do mundo na tal comunidade livre.
Na estação informaram-nos que
para Lugo só havia comboio às oito da manhã. Eram umas dez da noite. E agora?
E camionetes? Há?
Para animar, começou a chover.
Ficámos na estação até à meia-noite.
Então vieram fechar a estação. Só
abriam às seis e meia da manhã...
Mas deixem-nos ficar... não
estragamos nada. Ainda tentámos desesperados.
Nada a fazer.
A chuva carregou na força.
Procurámos um sítio para ficar.
Fomos procurar a estação da
rodoviária. Era do outro lado da cidade, estava fechada, não se podia entrar
nem pernoitar.
E a chuva a cair-nos em cima.
À chuva batemos à porta de vários
albergues para peregrinos.
Completo, completo. Padres,
freiras e beatos a dizerem-nos sempre que não. A chuva cada vez mais forte e
fria. Um padre de áculos de aros dourados e ar zangado, inclusivamente ameaçou
com a polícia perante a nossa insistência.
Tentámos algumas pensões que, ao nos
verem chegar com ar e situação de facto de sem-abrigos, diziam que estavam
cheios ou simplesmente não abriam a porta. Talvez estivessem mesmo cheios.
Passámos à porta de uma agência bancária.
Ingenuamente pensando que os
bancos estão lá para um momento em que precisemos, entrámos no átrio de uma
agência da Caja com o cartão multibanco.
Ali dentro não estava a chover.
Eu nem quis ver o saldo. Tirámos as mochilas encharcadas e estendemos os sacos
cama que estavam razoavelmente secos.
Dispusemos-nos para dormir umas
horas.
Não era confortável, mas estava
seco.
Não passou nem meia hora. As câmaras
de videovigilância da altura eram rupestres, mas já trabalhavam. Alguém,
sentado no seu cubículo a fazer o turno da noite, viu no ecrã da sua televisão
obrigatória, entrar o jovem casal a dispor-se para dormir. Ficou atento e
esperou a continuação do filme. Como não tinha mais ação, entediado, chamou a
polícia e esperou para ver o que aconteceu a seguir.
Nem uma hora depois de termos
entrado, um carro parou do lado de fora e saíram três policiais para nos
tirarem dali.
Explicações em português e
portenhol.
É que não forçámos a entrada, veja,
com o meu cartão entro aqui. Pois, e não encontrámos pensão, nem albergue e
como podem ver está a chover comó caraças...
Tivemos de sair à mesma.
Pedimos estadia na esquadra até
abrirem a estação dos comboios. Na polícia também há gente boa.
Deixaram-nos pôr as mochilas num canto, usar as casas-de-banho e as toalhas
secas. Estender os sacos camas não que já era abuso.
Dormitámos umas horas nos bancos
de madeira.
A meio da noite chegou um carro
patrulha. Era o chefe e vinha zangado. Tratou logo de nos pôr na rua e dar uma
piçada nos agentes que nos desenrascaram.
Outra vez molhados e com frio.
Caminhámos à chuva mais de uma
hora até à estação dos comboios. Ainda esperámos um bocado até nos abrirem a
porta do chão seco.
O dia nasceu chuvoso e comemos ovos
cozidos que sobraram do farnel.
Nessa noite de chuva, aprendi uma
lição para a vida, quando chegam as tempestades, nunca devemos contar com ajuda
de padres, bancos ou chefes de polícia.
Sem comentários:
Enviar um comentário