A Bruxa da Paiva, ou “a Peidorrenta” como secretamente lhe chamavam,
entrou no seu passo apertado e determinado e foi directa ao balcão, levantou a
tampa de madeira castanha e investiu direita ao Ferreira. A cabeça dela estava
ao nível do peito do merceeiro, um homenzarrão seco e grande como uma nogueira
de Trás-os-Montes. Menos de meio metro separava as duas pessoas. Ela parou de
andar e apontou o indicador mirrado, retorcido e bronzeado directamente à cara
do merceeiro.
- Olhe senhor Ferreira, venho cá porque sou sua amiga e não lhe quero
arranjar problemas...
Depois prosseguiu baixinho, quase em segredo: O meu Janita foi preso
ontem pela guarda. Coisas de política. Só hoje é que me disseram... Eu daqui
bocado vou matar uma galinha amarela que lá tenho e vou fazer uma canja pró
jantar do meu neto. Se o meu João Manuel não estiver a sentar-se às sete para
jantar, falava apontando o relógio na parede da mercearia, vou ficar zangada, e
eu quando fico zangada, não respondo por mim! Até sou capaz de pegar nestas
pernas velhas, subir lá acima ao primeiro andar e ir falar com a Dona Perpetua.
O dedinho esticado apontava para cima da loja, repassava o tecto da mercearia e
entrava no recatado lar do Ferreira.... Estou tão zangada, tão em fezes pelo
meu menino, que nem sei o que faça. Mas sei que o Senhor Ferreira pode por
pessoas na prisão, mas também pode tirá-las. Não lhe custa nada a si, como a
mim também não custa, é só falar com a pessoa certa. A mim, não me custa ir ali
a cima, falar com a sua esposa, e explicar-lhe que o Senhor Ferreira lhe falta
na cama porque a tesão lhe vai toda para o buraco do cu! Vou dizer-lhe que deu
os cinquenta escudos que disse que os comunistas lhe roubaram, e que tinha
guardados debaixo da caixa do sabão, ao Silvino Fragateiro que é quem lhe dá
essas dentadas e chupões nos ombros que estão todos marcados e que é por isso
que você ao pé dela não despe a camisa. E já que estamos a conversar, também
lhe quero dizer uma coisa, o que nos tem roubado com o bacalhau molhado e com a
serradura na farinha, dá perfeitamente para pagar este bocado de manteiga que
tem aí atrás escondida a me vai oferecer agora!
Serviu-se ela própria da manteiga que tirou com uma faca de madeira e
embrulhou no papel próprio. Depois virou as costas ao merceeiro. Saiu de trás
balcão e repôs a tampa que lhe deu passagem. No silencio da mercearia vazia
soaram os três peidos que a bruxa deu: Pás, pás, pás.
A médium vidente tinha um intestino com personalidade própria e quando
estava em transe ou muito nervosa, soltava sonoros traques confirmando como
verdade absoluta tudo o que a boca dizia.
Era a Bruxa da Paiva, a Nina Alda prós amigos e vizinhos, a Ti Alda
Parteira desde o Lavradio a Palhais, a Alda Benzedeira para os funcionários públicos
e pequeno-burgueses. O “a Peidorrenta” como lhe chamavam pelas costas os miúdos
e as beatas lá de baixo da Igreja Senhora do Rosário.
- Ajudo com as suas mezinhas as mulheres a parir e os homens a cobrir
Era assim que se definia a si mesma quando lhe perguntavam o que fazia.
Bruxa e rezadeira. Dizia o passado, o presente o e futuro a quem chegasse e
pagasse para isso.
Também o dizia a quem precisava de saber, mesmo sem pagar, mas esses
ficavam simplesmente a dever-lhe um favor. Às vezes, mais raramente, era
obrigada a dizer o que não queria para por os outros a fazer o que era preciso.
Foi este o caso.
O Ferreira da mercearia, ficou ainda mais branco e ainda mais calado
depois daquele dia.
Depois da bruxa sair, continuou quieto e calado. Uma estátua.
Congelado de medo em pleno verão e sem que se apercebesse o seu corpo inteiro
suava. Era uma estátua que suava. Quando tentou reagir, as mãos tremiam-lhe.
Como é que se foi deixar cair nas mãos desta puta desta bruxa, pensava. Como é
que ela sabia? Logo ela. Logo ele... uma pessoa respeitável. Com um irmão, que
enfim, é uma pessoa importante, quase manda-chuva na secreta…Caraças!!!
E agora?
E agora?
Que idade teria o neto da bruxa, o Janita? Quinze? Dezasseis? Para já
andar nestas coisas de política se calhar tinha mais. Já estavam em 1943, ora
quando ele chegou no ano 30, o neto da velha ainda era menino de colo. Parece
que crescem adubados com a água do mar nos pés e o fumo das fábricas nas
ventas. Tirou a bata azul escura, remendada e suja e vestiu o casaco cinzento
de ir à vila. Estava calor. Mais calor ainda depois do casado vestido. O chapéu
preto e as costas vagamente dobradas a receber directo o sol de Julho. Andou na
direcção da azinhaga e preparou-se para descer os barrancos na direcção do Tejo
e daí seguir até ao Posto da Guarda. Mas depois lembrou-se que a Guarda abrira
um posto provisório dentro da fábrica para poder prender os grevistas. Quinze
minutos depois, com o suor a escorrer em bica, e a deixar um rasto de cheio a
suor, estava à porta da fábrica.
No portão um guarda e um legionário. Aos pares como os cornos,
dizia-se.
O guarda ainda abriu a boca para falar, mas o legionário adiantou-se:
É pá não vês que é o Senhor Ferreira, irmão do Subinspector. Senhor
Ferreira, o que faz aqui com este calor? Vénia e cumprimentos. Entre, faça
favor Senhor Ferreira.... veio falar com o seu mano? Entre faça favor,
abrigue-se aqui na portaria que está à sombra. Mais vénias.
O Chupista fez cara séria. Era bom que lhe mostrassem respeito. Estava
cansado, encalorado e fodido no pior sentido do termo!
- Leve-me agora ao meu irmão. É urgente.
No gabinete do Subinspector Ferreira, o mano velho entrou ofegante.
Sentou-se na cadeira e nem esperou que o irmão falasse:
- Temos que soltar o João Alves. E depressa. Antes que a coisa dê
merda. E não me faças perguntas. Soltas o gajo e pronto!
Calma Nicolau. Senta-te. Tens sede? Queres um refresco? Que pressa é
essa? Temos que soltar quem? Ó Nicolau, nem parece teu!!!Isto não funciona
assim... Quem é o João Alves?
O director da brigada da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado,
chamava-se Arnaldo Ferreira. Foi o seu irmão Nicolau quem o ajudou a criar e lhe maneira
financiou os estudos. Dizia-se na Paiva e no Alto do Seixalinho, que o trabalho
de recolha de informações da PVDE era todo feito pelo Ferreira da Mercearia.
Dez minutos depois do merceeiro ter entrado no gabinete do
subinspector, estava este a abrir a porta e a gritar cá para fora:
– Ó Cabo Neves, veja lá se temos algum detido de nome João Alves e
traga-o à minha presença.
Como bom militar que era o Neves cumpriu sem fazer perguntas.
Senhor João Alves faça favor de me acompanhar. O Janita levantou-se do
chão onde estava sentado. No armazém com telhado de zinco estavam mais de
quarenta cinquenta presos à espera, quase todos em tronco nu a aguentaram o
calor que assava as paredes e o chão empoeirado. No dia anterior tinham comido
pão duro e deram-lhes um bidon com água suja de óleo. Hoje ainda não lhes
tinham trazido o pão. O Janita pegou na camisa remendada e na caderneta da identificação
e andou direito para a porta. Para o interrogatório e tortura pensou. Quando
vestiu a camisa, na arrogância dos seus dezassete anos pensou: não vou falar.
Ao contrário do que estava a espera não o lhe começaram a bater no
corredor.
Ao fundo, abriram uma porta e numa divisão excessivamente grande para
a secretaria estava sentado o Senhor Arnaldo Ferreira, subinspector e director
do Posto Provisório da Fábrica.
- Senta-te rapaz. Disse o homem.
- Não obrigado, estou bem de pé.
Como queiras, chamei-te aqui para te dizer que te podes ir embora. A
PVDE analisou a tua situação e dada a tua idade e como não tens antecedentes,
podes sair.
As palavras do director apanharam-no desprevenido.
Na sua cabeça as ideias andavam a mil. O sono, o medo, o calor, a sede,
e mais o medo. Tudo girava.
– Senhor director, e os outros homens que tal como eu foram presos à
porta da fábrica. Temos todos a mesma responsabilidade. Estávamos todos juntos,
devemos sair todos junto senhor director!
Mau, estou a dizer-te que te podes ir embora e tu ainda estás armado
em parvo??? Some-te da minha frente! Ó Neves, leva este gajo para longe da
minha vista e mete-o na rua!!!
O agente Neves entrou e pegou no braço do Janita que enquanto era
arrastado ainda ia dizendo, mas, mas, mas. Pragmático e pedagógico o agente
Neves resolveu a questão com um calduço que derrubou o Janita, franzino e
mal-comido.
– Mas nada, faça o que o senhor director manda caralho!!! É para a ir
para a rua e vai para a rua!!!
Na rua o sol ainda doía nos olhos. O calor vinha do chão de calçada
que reflectia o branco que cegava sobretudo depois de ter passado tantas horas
na penumbra. Tacteando, seguiu direito a casa.
Já estava a quase a chegar a casa quando percebeu: coisas da minha
avó.
A velha, não o veio receber, mas mal o ouviu entrar, começou logo a
ralhar com ele.
– Então? Já chegaste da prisão? Já estás contente com a tua política?
Já te achas um homem só porque fizeste greve com os teus camaradas e foste
preso?? Vai-te mazé lavar que o cheiro a suor chega aqui! tens uma toalha seca
aí ao pé do balde. E despacha-te a vires para a mesa que eu já estou muito
velha para ter de esperar pelo jantar por causa das tuas políticas! Nem penses
em dizer-me que tens de sair agora e ires a correr avisar os camaradas que eles
vão pensar que ainda estas a ser vigiado! Vais depois de comer a galinha ali à
Sede do Paivense e deixas o recado escrito no papelinho escondido como
combinaram. E olha põe-te a pau que a moça la da costura da Miguel Paes a quem
andas a arrastar a asa, pode engravidar-se e depois casas à pressa!
Acabado este discurso de rajada, também em rajada soltou três peidos.
Estava terminada a conversa. Sentou-se em frente ao neto e comeu
calada, caldo da galinha e uns bagos de arroz.
O Janita comeu com a fome dos seus dezassete anos. Primeiro a canja
com os miúdos e arroz e depois saboreou a galinha corada como se fosse a melhor
iguaria do mundo. E era, era a melhor iguaria do mundo. Foi feita com todo
aquele amor que só as avós sabem dar. No caso dele, a avó alem de dar amor,
dava concelhos, dava receitas e dava peidos.
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