Estava calor e humidade. O ar
cheirava a gasóleo, a mar ao longe, a estufa, a lixo e ao doce de fruta podre.
As baratas do tamanho de pardais, voavam em curvas descendentes à volta do
candeeiro da rua que com luz amarela iluminava e o grelhador improvisado.
Na cozinha que dava directamente
para a rua, preparava-se o funge e a salada de tomate picado com cebola e
gindungo. Cá fora, na rua, velávamos uma galinha a churrascar nas brasas e
bebíamos minis tiradas de um bidon com água e icebergues do tamanho de melões.
A dona da casa era uma mulata
bonita e gorda, cunhada do meu amigo, irmã mais velha da sua companheira. Uma
mulher grande, resistente e dura que não perdeu a ternura, desde os treze anos que
tomava conta dos irmãos. Aos vinte já tinha o peso e a postura das grandes
matriarcas africanas. Falava calma e severa e toda a gente à sua volta,
naturalmente e espontaneamente lhe obedecia.
Arranjava-se para sair. Tomou
banho e o cheiro do seu gel de banho perfumado, que se sobrepôs-se ao fumo do
fogareiro e da gordura da galinha, chegou-nos antes de a ouvirmos. Falou de
longe para o fumo do fogareiro não contaminar o vestido:
-- Vou no aeroporto buscar o
Elias. Não deixem chegar o fogo na galinha nem fiquem bêbados antes de
chegarmos.
Especialista diplomado em
churrascos, o que estava comigo respondeu:
--- Vai na boa que eu mantenho
afastados os dois inimigos presentes: não deixo o fogo chegar à galinha nem o
branco chegar às cervejas...
Partiu com uma gargalhada
inesperada na sua expressão sempre severa e nós abrimos mais duas celebrando as
gargalhadas das mulheres e a amizade. Ela foi e eu perguntei:
– Mas quem é
esse Elias que ela vai buscar?
– É o namorado!
Namoraram na infância lá no mato, daqueles namoros de putos e não se viram
durante uns 12 anos. Quando foi da guerra ela deixou de receber as cartas dele.
Depois veio a Internet e reencontraram-se. No ano passado ela foi ter com ele
lá à Lunda. E agora, não estão mais de seis meses sem se ver...
Da cozinha veio a irmã, abriu uma
cerveja, acendeu um cigarro e acrescentou pormenores românticos à novela do
reencontro. Fomos bebendo e falando.
O Elias ainda em rapaz foi
raptado pela UNITA que atacou a aldeia onde morava na Lunda. Teria uns quatorze
anos quando fizeram dele soldado. Passou um mau bocado, viu morrer de morte
matada, familiares e amigos. Ficou com eles muitos anos na mata, terá assistido
e sido obrigado a participar em massacres. Depois fugiu e juntou-se às Fapla
onde chegou a sargento, posto com que passou à disponibilidade.
Metemos um terceiro cadáver de
galinha na grelha e abrimos mais umas para evitar a desidratação.
Não esperamos muito mais.
Ao contrário do Rambo que eu
esperava ver chegar, o Elias era um homem muito pequeno. Negro retinto e
magrinho, enfezado mesmo, com o peito para dentro. Uns cinquenta e cinco
quilos, no máximo dos máximos e pesando calçado com botas de biqueira de aço,
mais as duas copias das chaves de um portão grande no bolso. Usava um sorriso
meio triste de menino e uma gargalhada escancarada num olhar vagamente sombrio.
Saiu do carro e caminhou na nossa direcção um pouco dobrado para a frente e com
os braços a abanar. Trazia com um bigodinho ralo, uns ténis Nike brancos e
calças de ganga. Vinha a dançar dentro de uma camisola do Futebol Clube do
Porto tamanho M que lhe ficava três números acima.
A dona da casa comandou as
operações:
-- Fica aí com esses dois a beber
uma cerveja. U-M-A! O preto é cabo-verdiano e está com a minha irmã, o pula é
amigo da família e está de passagem. São fixes, mas abusados.... Vê se não
começas já a ganhar maus hábitos, tá?
Rimo-nos os três uns para os
outros.
Abrimos mais cervejas
passamos-lhe uma gelada.
-- Xii dói o dente do frio da
cerveja... não tem menos fria aí? Desabituei de beber cerveja gelada... Quando
tava no mato não tinha água quase nunca e não tinha cerveja quase sempre...
Fui à cozinha e tirei uma mini da
última grade que metemos no frigorífico.
Estava praticamente morna. Voltei
à rua com a garrafa na mão. Dei-lha.
Como sou descarado, perguntei-lhe
à queima roupa:
-- Olha lá Elias, ouvi dizer que
estiveste na mata com a UNITA e depois voltaste para as Fapla. Como é que
convenceste os cambas do MPLA que não eras um provocador nem um espião
infiltrado?
Olhou para mim e sorriu a mostrar
os dentes brancos regulares:
-- Não foi fácil maninho. Mas eu
fiquei firme. Fiquei sete anos até ter a confiança dos chefes, só faltava
conhecer o Savimbi. E quando eles já confiavam tudo em mim, eu trouxe uma
patrulha de doze para perto de um quartel dos nossos e capturei eles.
– Capturaste doze homens armados
sozinho?
– Sozinho não!
Foi com a ajuda do feiticeiro que eles tinham a quem eu disse a Fapla pagava
mais aos feiticeiros que a UNITA. Ele acreditou. Então o bruxo fez um pó com
raízes para por na comida, todos comeram menos eu e o feiticeiro... e todos os
que comeram ficaram a dormir. Depois foi só amarrar eles. O bruxo ficou a tomar
conta dos inimigo e eu fui chamar as Fapla. Quando as Fapla chegou mandou eu
mais o bruxo matar todos para mostrar que não éramos traidor. Então mandei os
bandidos cavar um buraco assim de grande (os braços abertos envolvendo a
enormidade do buraco) e disse para sentarem lá dentro para esperar na sombra o
transporte que os levava para a Luanda para serem trocados por outros
prisioneiros... Eles burro, sentaram só. Eu com duas granadas juntas matei e
enterrei ao mesmo tempo!!!
Ficamos os três em silencio com o
pragmatismo e a simplicidade da solução. Só se ouvia galinha a chiar nas
brasas. Para desanuviar, e porque não gostava de silêncios pesados, o meu amigo
cabo-verdiano perguntou:
-- E esse feiticeiro que estava
contigo? Agora também está em Luanda?
-- Não. Esse eu matei também.
Tinha de matar só. Era um feiticeiro ruim. Mau! Invejoso, mentiroso e ruim! Vi
fazer muita coisa má, tinha de matar só! Era quimbanda do Zaire. Dei um tiro na
nele. E com o facão cortei o pescoço para separar cabeça do corpo e deixei
enterrado em sítios diferentes.
Com os dedos compridos fazia
gestos de decapitação. Gesticulando, prosseguiu.
– Abri o bruxo
daqui-aqui, para tirar o coração e deixar para as hienas e tirei o fígado para
comer eu. Coisas antigas do mato, mas eu sei que são mesmo assim. E eu tinha
que comer-lhe o fígado para tirar-lhe a força! E te digo maninho, este era um
bruxo mau mesmo! Tinha o fígado muito amargo, muito amargo, muito amargo. Tché!
Amargo, amargo mesmo! Teve que levar bué da sal e bué de gindungo para
conseguir comer.... Vocês aqui não sabe, mas eu explica. Nós do mato sabemos
dessas coisas. Quando é uma pessoa boa o fígado não sabe amargo, sabe bem, como
o fígado de gazela que não tem maldade... Quando é uma pessoa má o fígado é
muito amargo, amargo. Porque a maldade e a força do espírito da pessoa estão no
fígado. Por isso eu tinha que comer o fígado dele se não o espírito dele ia me
empatar a vida toda!
Voltamos a ficar em silencio. A
beber e olhar para as brasas a crescer em chama.
A dona da casa, chegou sem
avisar. Descompôs-nos aos três por estarmos a deixar queimar a galinha que já
estava assada. Levou-nos em coluna para mesa. Na sua autoridade de metro e
meio, avisou logo que ao jantar não queria conversas nem de guerra, nem de
futebol, nem de política.
O Elias, rebelde e desobediente,
ainda antes de se sentar perguntou entusiasmado:
– E o
Engenheiro Pinta da Costa continua presidente do Porto, verdade?
Porque não lhe respondemos,
olhando para as galinhas assadas na travessa, sem pausas e com o mesmo sorriso
tímido prosseguiu com um verso:
Carne de galinha é boa,
carne de vaca também,
mas a melhor das carnes
é a carne que agente chama e ela
vem!!!!
Rimos todos.
E a sua gargalhada escancarada e
sincera afastou definitivamente todos os espíritos malignos e todas as memorias
de guerras passadas e futuras.
As mulheres riram da piada que
interpretaram como brejeirice de quem tem fome de amor de fêmea.
O jantar continuou animado e não
voltamos a falar de guerra, nem de política e nem de futebol.
No dia seguinte, segui viagem.
Parece que o Elias e a dona da casa, casaram e estão a viver em Luanda.
Não voltei a ver o Elias.
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