Nos anos cinquenta famílias inteiras partiram para lugares dos quais apenas lhes conheciam o nome. Para as crianças transplantadas, esse novo mundo era difícil entender.
“Nunca me tinha separado da minha mãe, por isso, não entendi quando nessa noite, a primeira noite naquela terra estranha, no dia em que conheci o meu pai, tive que dormir sozinha enquanto ela me trocava por aquele pai-homem-estranho.
Depois de tantas emoções controversas que dificilmente conseguia assimilar, o chão fugia debaixo dos meus pés, percebia agora, com toda a clareza, que a minha vida tinha mudado. Já não sabia se estava a gostar, mas ninguém me podia ajudar.
O quarto que me coube em sorte era uma pequena arrecadação dividida por uma velha cortina de flores azuis desbotadas que escondia móveis e toda espécie de objectos em desuso. Para mim tinha um pequeno divã, um cadeirão empoado e um esguio lavatório amarelado.
Não entendia o que estava a acontecer, mas fingi aceitar como se tudo fosse natural. No entanto, dentro do meu peito havia um grito que não deixei escapar. Na manhã seguinte a essa primeira noite, os meus olhos não se cruzaram com os da minha mãe. Guardei para mim toda essa angústia e nada falei.
As minhas noites passaram a ser um pesadelo! As velharias por detrás das cortinas mexiam-se, aterrorizava-me o estalar das madeiras velhas e os ruídos provocados por pequenos insectos. Na insónia dessas noites terríveis, a minha alucinada imaginação fazia-me acreditar em toda a espécie de monstros e demónios que ameaçavam surgir em qualquer momento! Ficava imóvel na cama, tapada até à cabeça pelo fino lençol, nos meus pequenos sete anos, rezava todas as orações que tinha aprendido até que, vencida pelo cansaço, adormecia.
Mas houve uma noite em que o quarto ganhou mais vida do que era habitual e não consegui suportar! Saltei para o chão, horrorizada, e fugi rapidamente para o pátio antes que algo saísse debaixo da cama e me agarrasse os pés. Com os olhos quase fechados, corri até ao quarto dos meus pais e desatei a bater furiosamente à porta!
Eles deixaram-me entrar e olharam-me com surpresa. Perceberam o meu medo e deixaram-me ficar com eles essa noite. Perceberam o meu medo, mas não perceberam todos os sentimentos que amarguravam o meu coração. Nessa noite, uma sensação de triunfo e culpa me invadiu.
Nas noites seguintes tive a companhia de Mary, filha de um casal espanhol provisoriamente instalado no hotel. Era muito simpática e carinhosa e alguns anos mais velha do que eu. Mas agora éramos duas almas apavoradas. Ela também não conseguiu suportar aquele cubículo e convidou-me a ficar no seu quarto.
Felizmente para mim, poucos dias depois, mudámo-nos para um dos pequenos apartamentos do piso superior e ali, no meu quarto branco e limpo, perto deles, as minhas noites passaram a ser mais tranquilas.
Para meus pais os negócios corriam de feição e o sonho permanecia intacto. Mas foi também uma época em que eu julgava que eles se esqueciam de mim, entusiasmados pela nova vida e com o filho que tinha nascido. Talvez por isso, num dia qualquer em que a tristeza me invadiu, estendi-me no meio do pátio e entre lágrimas e gritos exigi voltar para a aldeia, para casa da minha avó.
A minha mãe ficou desnorteada, penso que até ponderou fazer isso, mas logo reagiu e, com duas palmadas, acabou com a minha breve crise existencial.
Sei que mais do que saudades eu tinha era uma grande necessidade de chamar a atenção, dizer que eu também estava ali. Nesse dia jurei que, à primeira oportunidade, regressaria para a aldeia.
In: História em Pedacinhos. As casas da minha infância e os tempos de chá sem açúcar.
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