No frasco estavam os cogumelos acabados de colher que depois tinha sido cobertos com mel até cima. Foi por inícios de novembro que apanharam os cogumelos na serra do Caldeirão. Depois disso, deixaram o frasco dos cogumelos uns meses no escuro de uma dispensa naquela casa de pedra sem luz elétrica. Talvez tenha sido nesse período que a magia aconteceu ao mel e que os anõezinhos entraram pelo frasco. Anões não, gnomos. O que seja…
Ofereceram o frasco ao Zé numa tarde de verão. Vinha dentro de um saco preto de flanela atado com um cordão amarelo. Disseram-lhe que não podia apanhar luz. O frasco foi uma espécie de pagamento de uma boleia que ele deu entre o Rogil e Lagos. O dono do frasco, que foi quem apanhou os cogumelos, explicou que não tinha dinheiro para contribuir para a gasolina, mas que tinha um mel mágico com cogumelos e que oferecia. “Estes são cogumelos especiais e o mel que aqui está dentro tem poderes mágicos de promover o amor e a harmonia nos encontros.” Não falou em gnomos. O Zé sorriu e agradeceu educadamente, pôs o frasco dentro da mochila e seguiu viagem. Nunca mais se lembrou do frasco de mel mágico nem dos cogumelos que lá moravam dentro.
Passou o verão, e sem que ninguém fizesse nada para isso acontecer, todos entrámos pelo inverno passando por um outono esquizofrénico entre dias de calor e chuvadas de granizo.
Nesse inverno remoto, apareceu ao Zé a oportunidade de passar uns dias nos alpes franceses. Era para tomar conta da casa de uns suecos riquíssimos para quem uns amigos tinham trabalhado. A casa ficaria vazia duas semanas incluindo o natal e a passagem do ano, período em que os donos iriam à terra deles lá na Suécia visitar a família e tratar de burocracias. A função do Zé era ficar na casa e cuidar dos animais. Os suecos tinham dos dois enormes são Bernardos que tinham tanto de grandes como de pacíficos, o Zé devia cuidar dos cães, dar de comer à gata, alimentar as tartarugas e os peixes no aquário. No acordo, negociado por carta, porque ainda não havia telefones e os e-mails eram uma coisa rara, ficou estabelecido que lhe pagavam as viagens até ao alto da montanha e lhe deixavam a dispensa recheada , incluindo queijo e vinho e tinha ainda a possibilidade de abrir conta na mercearia da aldeia mais próxima, que distava uns três quilómetros. Os suecos quando viessem pagavam tudo.
Claro que ele aceitou.
Por volta de vinte de dezembro, pegou na mochila e fez-se à estrada. Voou enlatado sobre Portugal, sobre Espanha e sobre parte de França. Já todos se entretinham na histeria da natividade. Em Paris apanhou um comboio que o levou durante três horas através dos subúrbios e província nevada. Numa vilazinha simpática, apanhou uma camioneta que durante duas horas percorreu campos brancos como os postais ilustrados subindo e descendo montanhas. Inesperadamente o autocarro parou numa aldeia e o motorista veio pessoalmente dizer-lhe que era para ele descer ali. Depois telefonou para casa do homem do táxi. Esperou no café aquecido que aparecesse a quatro ele que servia de táxi e que o conduziu montanha acima até ao seu destino. O motorista quando o deixou, deu-lhe o molho de chaves que incluíam a chave do portão, da casa e outras que teria muito tempo de descobrir para o que seriam e que ele nunca viria a usar.
A casa era como viu nas fotografias, só que ainda mais linda porque estava emoldurada pela neve. Os cães correram a cumprimentá-lo. Eram gigantes gentis e lamberam-no durante o tempo todo em que percorreu o jardim, procurou a chave certa e se esforçou a tentar abrir a porta da cozinha. Só pararam quando fechou a porta atrás dele. Entrou na casa, pousou a mochila e depois de ir fazer o chichi de reconhecimento e marcação de território, foi fazer o reconhecimento interior. Era enorme. O aquário era do tamanho de uma pequena piscina. As tartarugas vorazes no seu lago de água quente. A gata ignorou-o aristocrática. Tapetes do tamanho de relvados de futebol e salas do tamanho de parques de estacionamento. Quadros nas paredes e esculturas colocadas estrategicamente para fazerem efeitos de luz. Ele foi instalar-se no quartinho que os donos daquele império tinham reservado para ele. Um quarto pequeno e praticamente independente que dava diretamente para a cozinha. Tinha uma salamandra que tratou de acender com uma casa de banho minúscula incluída. Lá fora fez-se noite. Saiu para fumar e voltou o ataque de carinho dos dois cães. Apesar do afeto trocado, o frio que se pôs empurrou-o para dentro para o calor da salamandra. Eram seis da tarde. Tentou ler. Aborreceu-se. Já estava noite escura desde as cinco horas. Como tinha fome decidiu ir jantar pão com queijo e vinho. Jantar que diga-se pode ser, por si só, o mais requintado dos manjares. Mas mesmo os melhores dos vinhos, bebido sem partilhar, tem sempre um travo ácido a solidão. Aborreceu-se outra vez e deu-lhe o sono, às oito foi para a cama e acendeu uma televisão que transmitia concursos em francês. Eram nove da noite e já o Zé dormia profundamente.
Acordou exatamente às quatro horas e dezoito minutos. Acordou só porque sim. Os números amarelos no rádio-despertador iluminavam o quarto. Acordou sem perceber porquê, mas acordou definitivamente. Não tinha mais sono.... Vestiu o casacão por cima da camisola do pijama, calçou as botas e saiu para fumar e ver a noite na madrugada. Nem luvas, nem gorro nem mais agasalhos. Claro que não fumou até ao fim. O frio era tanto que doía nos ossos das mãos e na cara. Voltou para dentro, voltou a deitar-se e dormiu mais umas horas depois de conseguir aquecer.
De manhã tinha arrepios de frio e doía-lhe o corpo todo. Ficar ali doente, sozinho naquela pasmaceira é que não! Decidiu fazer um chá de limão com um dos dois limões que tinha visto na cozinha. Fez o chá e procurou mel para adoçar. Não havia mel na cozinha nem na dispensa. A dispensa abastecida para alimentar um exército sem um frasquinho de mel.... Então lembrou-se do frasco que tinha ficado esquecido na mochila. Só reparou que tinha trazido o mel dos cogumelos quando tirou a bolsa dos artigos de casa de banho. O frasco do mel viajou clandestino dentro do saco de flanela sem que o Zé desse por isso. Serviu-se de uma colher de sopa. Os cogumelos eram minúsculos e estavam empapados no mel. Que se lixe, pensou, vai com cogumelos e tudo, que o que não mata engorda. Com o dedo provou o mel, achou-o doce com um travo meio acido meio picante e gostou. Pôs mais outra colher. Para temperar, acabou de encher a cafeteira fumegante com uma dose dupla de conhaque. Depois recostou-se num daqueles sofás suecos onde cabiam seis pessoas, abriu o livro e bebeu duas chávenas cheias. A primeira a escaldar a segunda morna.
A bebida não o matou, mas o chá fez-lhe um efeito inesperado. Primeiro deu-lhe calor, um calor bom pelo corpo, como se tivesse estado umas horas de um dia de verão na praia e o sol o tivesse aquecido sem chegar a queimar. Depois ficou bem-disposto, cheio de energia e vontade de fazer coisas. Tratou de alimentar os animais. A seguir organizou a roupa que tinha ainda metida na mochila. Sentia vontade de sair para a neve e fazer coisas ao ar livre. Agasalhou-se como se fosse para uma expedição polar e foi para o jardim. Decidiu partir lenha para a salamandra que pretendia manter acesa durante as próximas duas semanas. Não que fizesse falta mais lenha partida, porque havia na garagem um monte de lenha rachada especificamente para a salamandra..., mas apetecia-lhe dar aso àquela energia e fazer um trabalho que implicasse atividade física. Ao lado da pilha de lenha, um machado congelado preso num cepo. Pegou no machado e começou o trabalho de rachar os troncos grandes em pedaços mais pequenos. Estava nisto há cinco minutos quando eles apareceram.
Eram três. Pequenos, da altura de um isqueiro de plástico. Vinham vestidos de cores vivas a caminharem na sua direção. Primeiro pensou que eram animais. Depois percebeu que eram pessoas pequeninas. Chegaram e encostaram-se a um tronco que ele tinha acabado de partir. O tronco que não era maior que uma bota de um homem, ao lado deles parecia ter a dimensão de uma casa. O mais velho, falou-lhe em português:
– Bem-vindo à montanha Zé.
Ele fingiu que não ouviu. Agiu como se não fosse com ele.
Mas acontece que não havia ali mais ninguém e muito menos outro tipo que se chamasse Zé. De qualquer maneira ficou calado.
– Se te apetece rachar lenha, e uma vez que tens lenha rachada para a salamandra na garagem, porque é que não desces a estrada, e vais a casa da Blanche e lhe vais dar uma ajuda? Ela vive sozinha e todos os dias precisa de partir lenha para acender o fogo...
Nisto, um dos outros dois, mais pequenino e inquieto, interrompeu
Ela tem uma banheira de madeira, que gosta de encher com água quente... ela tomava lá banho com o marido, mas como ele se foi embora para Paris e não voltou... ela agora não enche a banheira...
O que tinha sido interrompido explicou técnico:
A Blanche não enche a banheira, que se chama jacuzzi, porque a caldeira que aquece a água está avariada, tem a válvula do vapor desapertada... o marido dela fez de propósito antes de se ir embora, desapertou a válvula... aquilo arranja-se com uma chave inglesa que está dentro da caixa de ferramentas por baixo do alpendre, dá-se um jeitinho e já está!
E o Zé calado, só a ouvir. Até se pode dizer que estava com uma certa cara de parvo, ali a ver os gnomos a falarem sobre consertar caldeiras e ele no meio da neve com um machado na mão....
O gnomo mais velho, bateu com um cajado do tamanho de um palito no tronco onde os outros se encostavam e falou numa voz rouca e surpreendente sonora num corpo tão pequenino. Calaram-se os outros dois porque o que falava era o chefe.
O que se passa Zé, é que tu estás aqui sozinho, na flor da idade, tens vinte e três anos, chegaste ontem e já te estás a aborrecer disto. Trezentos metros abaixo, está a Blanche, também sozinha, a sofrer de mal de amor e de frios nocturnos nos seus trinta e seis bonitos aniversários celebrados... E foi por isso que nós viemos trazer-te este recado, que não é um recado, é mais uma sugestão: desce a estrada, vira à direita no caminho por entre as árvores, e vai visitar a Blanche.
O Zé não deu resposta.
Decidiu que não lhes ia responder.
Definitivamente não ia alimentar conversas com estrunfes ou gnomos ou o que quer que fossem. Aquilo devia ser efeito da altitude. Espetou o machado no cepo, meteu o dedo no meio entre os dentes para tirar a luva, sacou de um sg gigante do bolso do casaco e sentou-se em cima de um tronco a fumar.
Os gnomos, vendo que não havia ali mais conversas, viraram as costas e em fila indiana seguiram para trás do monte de lenha onde desapareceram.
Desistiu de rachar lenha, mas a boa disposição não passou.
Voltou para dentro, tomou um duche na casa de banho do seu quarto de criada e voltou a vestir-se para a expedição polar.
Fechou o portão do jardim e desceu a estrada até ao carreiro que encontrou do lado direito entre pinheiros nevados. Entrou pelo carreiro e nem cem metros andou. Era uma casa pequenina de madeira. Do lado de fora, uma senhora loira e linda com luminosos olhos verdes tentava partir lenha com um machado demasiado grande para as suas pequenas mãos enluvadas de vermelho.
O Zé, no seu francês de praia, perguntou se era a Blanche.
Era ela mesma.
Ajudou-a com a lenha. Rachou troncos durante cerca de duas horas. Ela calada a vê-lo trabalhar. Depois convidou-o para tomar um chá que ele aceitou.
Ela tinha um jacuzzi enorme de madeira.
Foi “herança do ex-marido”, que é alsaciano e de tão fascinado pela cultura japonesa foi viver para Paris com o mestre de kempo...O jacuzzi não trabalha.
O jacuzzi estava sem funcionar porque dependia de uma caldeira que a Blanche disse estar avariada. O Zé, voluntarioso soprou que talvez conseguisse resolver. No alpendre encontrou uma caixa de ferramentas e com a chave inglesa, apertou a válvula de saída do vapor. Depois acendeu o lume para experimentar, a ver se a caldeira funcionava.
Funcionava.
A Blanche ficou tão contente que decidiu ir logo tomar um banho no jacuzzi.
A água estava deliciosamente aquecida, o Zé pôs a mão para experimentar e também tomou banho.
Acabou por ficar naquela noite que chegou cedo sem avisar e os apanhou aos dois no jacúzi.
Na manhã seguinte, entre edredons e beijos, ela perguntou:
Como é que vieste aqui parar? Por acaso?
Não. Não há acasos. Foram os gnomos da montanha que me disseram. Apareceram três gnomos e disseram-me que precisavas de ajuda para rachar lenha, que tinhas a caldeira avariada e que te estavas a sentir só...
Ela riu-se e pensou que ele estava a mentir.
O Zé também se riu e depois levantou-se. Comeu e saiu para ir lá acima à casa dos suecos dar de comida aos animais. Não se demorou. A Blanche ficou de fazer almoço e ele prometeu que trazia mel para a sobremesa.
Lambuzaram-se por duas semanas no mel mágico. Viveram felizes para sempre até meio da segunda semana de janeiro que foi quando o frasco ficou vazio.