Quem está acima dos três mil e
quinhentos metros de altitude está inevitavelmente bêbado e maldisposto. Acima
dos quatro mil, deixamos de estar bêbados para estarmos apenas e muito maldispostos.
Pelo menos comigo é assim. Logo eu, criado na borda d’água, nascido com o mar
nas veias, a morar no rés-do-chão, eu, que se tenho de subir ao telhado para
substituir alguma telha enjoo logo! Ver-me assim nas alturas agonia-me.
Vem isto a propósito das voltas e
revoltas que o destino decide dar. O destino, todos já sabemos que é um fado
corrido e sem decoro que quanto mais repenicado for, mais voltas dá.
Pois foi este fado andarilho que
me levou um dia a pisar o chão antigo das montanhas dos Andes. A coluna
vertebral da América do Sul. Os gajos engravatados que vivem nas capitais
sul-americanas dizem que os Andes têm dono e dizem que são eles os donos das
parcelas dos Andes. Dizem: os Andes do Equador, os Andes do Chile, dizem eles
que são os Andes Equatorianos, os Andes Peruanos, os Andes Bolivianos, os Andes
Argentinos... Tudo tanga. Conversa para inglês ver e comprar minério arrancado
à montanha. Os Andes têm donos sim, mas são aqueles que lá moram em cima, nas
alturas onde o ar escapa dos pulmões e onde o vento seco e gelado corta as
orelhas.
Um gajo mais distraído, olhando
para o mapa, até acredita nessa história dos países serem proprietários dos
Andes. Mas subindo à montanha, percebemos que entre o papel impresso no mapa e
a montanha vai uma distância tão grande como a imensidão abarcada pelas asas
abertas do condor. No rarefeito ar, na estreita berma da estrada estão os
verdadeiros donos da montanha. Na curva que se retorce na vertigem das alturas
e na agonia do enjoo, é aí em cima que os donos dos Andes moram. Entre alpacas
e pedras velhas gretadas pelo gelo, pelo sol e pelo vento. Os donos da montanha
estão lá em cima, ao lado de uma cancela ferrugenta que chia quando tem de
abrir. Abrigados nuns barracões, vestem-se de lã grossa, de fardas incompletas
e variadas de polícias, guardas, militares, pastores, bombeiros ou
trabalhadores das estradas. São índios, cholos mestiços e eventuais
descendentes de emigrantes europeus. Ficam lá em cima durante meses em
intermináveis comissões de serviço à sombra de uma bandeira e dos brasões que
representam os estados que lhes pagam mal, tarde e a más horas...
Nos barracões à beira da estrada
funcionam as alfândegas e onde as fronteiras vendem vistos, chá, casacos,
empanadas, café, água, serviço de banho e posto médico. Lá em cima, onde se
alugam prostitutas, carros velhos e mulas. São mecânicos, xamãs, cambistas de
moeda e outras coisas que tiverem que ser. Vivem do salário e daquilo que a
montanha pode dar a quem tiver os olhinhos abertos e os dedos prontos. Só para
quem se consegue adaptar à falta de ar e às tonturas permanentes. São guardas,
fiscais alfandegários, militares e outros burocratas e todos os outros. Também
de ser obrigatoriamente enfermeiros e médicos. E há taberneiros, bruxos,
prostitutas, lenhadores, canalizadores, mecânicos e, às vezes, agentes
funerários. A natureza dos Andes ensina a autossuficiência.
A quem por estrada cruza a
montanha, impressionado pela majestosidade dos picos nevados, agoniado da
vertigem e a asfixiar da altitude, a quem nestas condições, pergunto eu, ocorre
queixar-se das mãos untadas do soldado que fecha os olhos e deixa passar
contrabando em troca de uma garrafa de bagaço? Quem é que se vai dar ao
trabalho de moralizar a fronteira? O soldado que ali está há meses, sem o
conforto de uma inspiração profunda e sem uma cama só para ele. O soldado que
se aquece agarrado ao púcaro de alumínio do seu chá de coca. Alguém o vai
criticar o soldado por virar as costas enquanto uma carga passa? A estrada
pertence-lhe, não só ao soldado, mas a todos os que ali vivem isolados nos
postos de fronteira. A montanha é terra de ninguém, mas a fronteira é dos que
lá estão.
Nós viajámos dois dias e uma
noite sempre a subir. De autocarro que até era confortável, diga-se. Sempre a
subir cerros e escarpas, cada vez mais altas e despidas. Para trás, o gelado
Pacífico, à frente, a montanha. A estrada propícia a enjoos, sonos, conversas,
tédio e mais enjoos. E mais sono, cada vez menos conversas e cada vez mais
tédio. Do lado de lá do vidro a paisagem majestosa. Durante as paragens
obrigatórias para o xixi, para o chá ou café, o ar frio e escasso da alta
montanha. Pedras e quase nenhuma vegetação. Às vezes nos vales profundos,
ribeiros barrentos a correrem violentos entre as pedras. Poucas pessoas,
algumas alpacas misturadas com cabras. Nas paragens, as putas e os militares,
os policias, possíveis traficantes, comerciantes, pastores de gados vários e
nós. Todos a avaliar-nos uns aos outros e identificando riscos, perigos e
oportunidades.
A última paragem em território
chileno, foi a mais demorada e mais tensa. Saímos todos do autocarro e o
motorista abriu o compartimento das bagagens. Policias e militares vieram dar
palpites de arrumação enquanto não chegou um outro autocarro em sentido
contrário vindo da Argentina para entrar no Chile. Chegado o autocarro,
deixaram de se mostrar interessados na mercadoria, nas mochilas e nos cigarros
que eventualmente trazíamos e passaram diretamente ao seu ofício de fiscalizar
a entrada da fronteira chilena contra os perigos que podem vir da Argentina.
As pessoas que viajavam connosco
no mesmo autocarro atarefaram-se nas suas bagagens. O ar tinha pouco oxigénio e
muita tensão nervosa.
Dois camionistas brasileiros, do
interior do Mato Grosso, viajavam de regresso depois de levaram uma carga de
madeia e sabe-se lá mais o quê de Cuiabá no Brasil para Santiago no Chile. A
fumarmos e a bebermos chimarrão cá fora, avisaram. Não se afastem nem baixem as
vistas dos vossos troços.... tem muito bandido aqui capaiz de botar um quilo de
cocaína no seu malão para passar na fronteira limpinho com seus dez quilos no
saco! E cuidado com os cara da polícia, aqui polícia é pior que bandido!!!
Voltámos a entrar advertidos para
dentro do autocarro e uma hora depois estávamos na fronteira argentina. Todos
saímos de passaporte na mão. Nós os dois, com as nossas mochilas blindadas nas
costas, mãos nos bolsos e fechos e as caras fechadas. Estava frio debaixo do
telheiro onde parou o autocarro. À nossa frente, uma mesa comprida com o dobro
do comprimento do autocarro. A um metro da mesa, uma linha amarela desenhada no
chão. A linha devia ser branca cor da neve e da coca que o vento espalha lá
fora..., mas como vos estou a contar a verdade, não vos pinto a linha e
digo-vos tal e qual como aconteceu.
Três polícias e dois militares.
Os polícias de pistola à cintura, os militares de metrelhadora a tiracolo. Os
polícias na casa dos ciquenta-sessenta, os militares entre os vinte e os
trinta. O motorista depois de falar baixinho com o chefe dos polícias, recolheu
os passaportes de toda a gente e informou-nos que era preciso pôr toda a
bagagem em cima da mesa e esperar do lado de lá da linha amarela. Para nós foi
simples, bastou tirar as mochilas das costas e pôr em cima da mesa. Para o
resto dos passageiros, demorou mais um bocado…
O grupo de desconhecidos que
éramos há dois dias atrás no Chile, era agora uma família em apuros. Estávamos
todos tensos. Muitos de nós com frio. Alguns a sofrerem de tonturas e
nauseados. Queríamos todos sair dali e descer depressa a montanha. Eu entre os
mais agoniados, a precisar de baixar dos três mil e quinhentos metros para
acalmar aquela bebedeira parva que dá tonturas e cansa sem dar satisfação. Meia
hora depois, o motorista voltou com os passaportes e veio falar com todos os
passageiros:
– Vamos dar qualquer coisa para
os senhores guardas que aqui estão ao frio desde a noite passada, vamos
dar-lhes algo para irem tomar um cafecito quentinho!
Assim, à cara podre. Com um saco
de pano preto, iniciou a coleta. As pessoas iam pondo notas e moedas como no
peditório das igrejas.
A minha companheira de viagem,
desconfortável no telheiro gelado e preocupada com os pacotes a mais de
cigarros e duas ou três garrafas que levávamos nas mochilas, disse-me para não
me armar em parvo. Para de uma por uma vez na vida ser tolerante com o
currupto. Para lhes dar qualquer coisa que nos pusesse a andar depressa dali
para fora. E não sejas agarrado, vê se és generoso, que quero sair daqui.
Fica descansada, vou resolver.
Quando chegou a nossa vez,
perguntei com cumplicidade ao motorista:
-
Os guardas aceitam euros?
-
Como não!!! claro que sim!!!!
Até os olhinhos brilharam ao
motorista, que devia ter parte no acordo com o guarda.
Fiz as contas, remexi na carteira
e nos bolsos e decidi-me por cinquenta.
Acabada a recolha, o motorista
entregou o saco ao políca mais velho que entrou no contentor a dizer boa
viagem. O motorista satisfeito, esfregava as mãos:
-
Podem arrumar tudo de novo no compartimento de
bagagens, vamos seguir viagem enquanto os senhores guardas vão tomar o seu
cafecito!
Meia hora depois, no conforto do
ar condicionado do autocarro, a descer a montanha na direção das imensas pampas
argentinas, perguntou-me ela:
-
Pagaste em euros para passarmos a fronteira?
-
Sim, claro.
-
Quanto deste?
-
Ciquenta.
-
Euros? Estavas generoso!!!
-
Não! Cinquenta cêntimos, para um cafecito dá
perfeitamente!!!
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