Quando te vi pela primeira vez,
estava com frio e febre. A desejar chão firme para pisar, um banho quente,
roupa confortável e uma manta. Foi no inverno e chovia. Olhei-te de relance
através do vidro embaciado da janela fechada do táxi onde seguia. Confesso que
mal reparei em ti. Vi-te escura e mal iluminada debaixo dos candeeiros escassos
e gostei. Mas só isso. Nessa noite estava demasiado focado no meu mal-estar
para te olhar. Tinha vintes e tais e achava que estava definitivamente
imunizado às crises de paixões súbitas e ainda mais ao amor crónico. Estava
enganado, claro.
No dia seguinte fiquei de cama.
Febre alta em clima tropical que me fez delirar. De ti senti apenas o perfume
que entrava pela porta do quarto e vislumbrei-te na luz coada pela janela. Comi
o que tinha na mochila e bebi chá. Voltou a chover à noite.
Não esperei pelo terceiro dia
para me levantar e caminhar. Na manhã seguinte, tomei o duche possível com uma
caneca e água aquecida num fogão cheio de fugas. Mudei de roupa, saí e encontrámo-nos
definitivamente. Nunca mais nos separámos.
Nunca mais saíste de mim. E eu
ficarei em ti enquanto viver.
Naquela manhã, combalido, fui aos
meus compromissos, ainda febril. Alguém me disse que tinha de me tratar e ser visto
por um médico. Fui ao teu hospital e fizeram-me uma bateria de exames.
Diagnosticaram-me escarlatina. Tinha trazido a doença do meu filho que entre
abraços e beijos de despedida me contagiou, o rapaz teria uns dois anos.
O médico, espantado perguntou:
– Mas a
escarlatina não está erradicada na Europa?
– Pelos
vistos não! Respondi insolente.
Para se vingar deu-me ele mesmo
uma injeção que doeu horrores, mas que me curou. Fui à farmácia e, com a
receita manuscrita, deram-me precisamente seis comprimidos, contados com uma
pinça para dentro de um frasco de vidro. Aqueles que precisava para me tratar,
nem mais um. Estamos em período especial, desperdício zero, disse-me o
farmacêutico. Depois pediu-me para voltar a devolver o frasco, coisa que não
fiz e por isso ainda hoje o devo ter para aí metido nalguma caixa com
recordações avulsas, entre recordações de ti.
Viste-me a coxear agarrado ao
rabo dorido e riste-te de mim, para mim. Disfarcei a dor e mantive a dignidade
num caminhar mais lento. Depois seguimos juntos pelas tuas ruas. Lentamente e
gingando, ao meu ritmo convalescente, que é o teu ritmo de sempre, sem pressa.
O amor aconteceu-me inevitável.
Claro que me apaixonei por ti. A cor morena, o riso fácil e todas essas tuas
curvas. O efeito luminoso que fazes deitada recostada no mar. O teu riso de
portas escancaradas, a música com que falas e todas as cores que usas. A tua
descontraída disponibilidade e esse eterno convite nos olhares. A sensualidade
intensa que noutras seria decadente e vulgar, mas que em ti são absolutamente
perfeitas. Apaixonei-me pela tua cultura sem pedantismos e pela tua dimensão
imensa e concentrada. Pelo o teu canto, pelo teu encanto e, naturalmente, por
todos os teus secretos recantos.
Ficámos desde esse remoto inverno
do século passado, irremediavelmente juntos.
Eu estava alojado numa casa
afastada do centro, já depois da Mariana De Hemingway, porque amigos de amigos
conheciam a dona e facilitaram o aluguer. Em frente à porta de entrada, uma
estrada de terra batida. Do outro lado da estrada uma casa mortuária onde os
familiares e amigos se despediam e velavam os falecidos. Como os mortos em Cuba
não são velados nas igrejas, chegavam os corpos dos hospitais ou das casas onde
foram vivos diretamente para a casa mortuária. Nos fios elétricos por cima, às
vezes multidões de pássaros pretos com a cabeça e o pescoço vermelho, outras
vezes os fios vazios de pássaros. Eram abutres. Auras, esclareceste na tua voz
cantada e rindo para mim. Percebi que vinham em bando sempre que havia corpos
para velar.
Demasiado tétrico para mim. E
para ti também, tu sempre tão alegre, a morte e os abutres não condiziam com o
teu sorriso de luz e com as cores com que te vestes e despes.
Mudei-me para mais perto. Um
apartamento no centro, perto da Plaza de La Revolución. Debruçado da varanda
via-se o icónico mural do Ché. Era um apartamento pequeno: um quarto, uma sala,
uma varanda imensa, uma cozinha minúscula e uma casa de banho igualmente
pequena. Dava e sobrava para nós. Também era de um amigo de um amigo. Médico e
celibatário prestes a partir naqueles dias em missão para o Congo. Subalugou-me
a casa na condição de não usar o quarto nem a cama que eram dele e só dele.
Devia dormir no sofá da sala, não estragar nada, dar de comida ao papagaio que
se chamava Lukumi, cumprimentar as vizinhas, não fazer festas ruidosas, nem
tocar na coleção de máscaras africanas nem nas garrafas de rum.
Cumpri quase na totalidade o
acordado.
Ao fim da tarde voltava, tomava
banho e ia para a minha casa que era aquela sala forrada de livros e máscaras
africanas. Em vez de me sentar na cadeira de baloiço a desfrutar da biblioteca
aberta só para mim, era para ti que eu corria. Tomava banho no chuveiro
elétrico, ouvia a tua voz pela varanda aberta, dava de comer ao Lukumi e voava
ao teu encontro.
Não cumpri o que me propus quando
entrei no apartamento do médico: não desfrutei dos livros nem consegui ensinar
o papagaio a dizer "Barreirense". Li transversalmente uma coletânea
de poesia latino-americana. O Lukumi, quando me vim embora, de vez em quando
dizia "foda-se", expressão que não me lembro de lhe ter ensinado.
Tu ficavas à minha espera na
porta da rua, depois vinhas e mostravas-me a natureza de todas as tuas coisas.
Prosseguimos nas tuas noites mornas e longas, contigo a contares-me segredos e
a plantares em mim todos os afetos. O teu cheiro, a tua música, o teu hálito
doce perfumado de rum ficarão sempre comigo. A tua temperatura e toda essa
disponibilidade para ser feliz nas coisas simples que me habituaram mal.
Aprendi a nomear o universo, no teu sotaque nasalado e melado.
Comi e dormi em ti por semanas
consecutivas sem me fartar nem um bocadinho.
Quando tinha de me afastar,
apanhava os transportes possíveis naquele período especial e regressava
depressa. Voltava sempre todas as noites para o doce de ti nas tuas ruas.
Nesse período de intensa paixão,
pela primeira vez, senti vontade de largar tudo e de me juntar a ti. De vir a
Portugal buscar meia dúzia de coisas e ficar contigo. Ou nem sequer vir. Por
magia teletransportar os meus e ficarmos todos juntos.
Os grandes amores são assim,
insensatos e loucos.
O tempo voou enquanto estivemos
juntos, depois tive de voltar e estranhei-te.
Passaram muitas luas sobre o
Atlântico que nos separa até eu poder regressar a ti.
E quando voltei, lá estavas à
minha espera à porta do avião, a sorrir disponível no teu doce perfume de
fruta, rum e tabaco.
Depois foi sempre assim de todas
as vezes que voltei.
E cada vez que tenho de sair de
ti, sempre que tenho de vir embora, dói-me. Dói sempre sair de ti.
Não posso nunca dizer que sou
teu, porque não sou. Nasci e cresci noutras latitudes Não posso por isso dizer
que sou teu. Mas a verdade é que não minto se disser sobre ti ao mundo que tu
és minha.
Que continuarás a ser minha sempre.
Porque um caso destes de amor,
não acontece duas vezes numa mesma vida.
Se pudesse voltava agora mesmo,
porque de ti nunca saí.
Parabéns meu amor. Parabéns
Havana, estás a fazer quinhentos anos e nas fotografias que me vão chegando, a
cada maré que te sobe pelo Malecon, estás cada vez mais e mais bonita. Mais
linda que nunca. Ganas de ti mi amol!
TQMLH.
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