Foi nesta cama Alfredo. Foi nesta cama.
Assim falou a
Bárbara na hora da sua morte. Não se confessou ao padre. Confessou-se ao
marido, também ele octogenário, mas mais rijo e saudável que a mulher, de quem
em breve ficaria viúvo.
A Bárbara, que
antes de ser a Dona Bárbara que a vizinha conhecia de ver arrastar os pés a
caminho da padaria e do lugar da fruta, foi a Bárbara boazona que nos anos
cinquenta fazia virar a cabeça dos rapazes e homens hipnotizados com o seu
abanar de ancas...
Pois a Bárbara,
antes de morrer, disse ao marido que o tinha traído. Disse que tinha sido só
uma vez. Uma coisa sem importância, que tinha sido com o cunhado Dinis, marido
da irmã, ex-jogador da CUF e falecido há muito, no início dos anos oitenta num
acidente de automóvel em Águas de Moura. Disse que tinha sido naquela mesma
cama onde agonizava e esperava a morte. Depois não disse mais nada. Adormeceu
de cansaço e emoção e morreu.
O velho Alfredo
ficou sem saber o que sentir: se raiva da mulher morta, se raiva do cunhado
morto. Indeciso, ficou com pena dele próprio e chorou uns cornos de mais de
quarenta anos. A neta ao vê-lo chorar assim, comentou com o marido que amores
daqueles já não se viam e deu ao avô um calmante.
Depois veio o
resto da família, mais o agente funerário e um médico com papéis. O Alfredo
completamente pedrado do comprimido. A filha preparou-lhe o banho e
arranjou-lhe um fato para vestir, pôs a gravata preta dos funerais e recebeu os
pêsames de familiares e vizinhos com a alma encortiçada e a raiva dos cornos recentes
com mais de quarenta anos a roer-lhe. A raiva misturada com o remorso de sentir
raiva à morta e ao cunhado igualmente morto.
O velório e o
funeral passaram como um sonho. Nos três dias seguintes ficou em casa da filha.
Depois, ao terceiro dia, voltou para casa. Não queria ser um peso para a filha.
A cozinha ainda tinha os caixotes de medicamentos da Bárbara. Nos armários a
roupa dele, toda a imensa área ocupada pela roupa da Bárbara era um buraco
vazio. A filha e a neta, a neta que por acaso também se chamava Bárbara,
decidiram tirar a roupa da mãe e avó do armário, para lhe evitarem mais
sofrimento. Não lhe evitaram o choque do armário vazio.
Sentou-se na
cama de viúvo a chorar.
Mas a memória
foi um alfinete que o fez saltar.
Foi nesta cama
Alfredo, disse a mulher morta na sua cabeça.
Com raiva,
desfez a cama. Arrancou os lençóis e os cobertores carinhosamente montados
pelas mãos da neta e da filha, para lhe aconchegarem as primeiras noites de
viuvez. Pegou no colchão da cama de casal com uma força surpreendente para os
seus oitenta e seis anos e arrastou-o até às escadas e das escadas até à porta
da rua. Sentou-se a descansar das pernas e braços e a recuperar o ar dos
pulmões. Não descansou da raiva. Voltou a pegar no colchão e arrastou-o até à
parede ao lado do contentor do lixo onde ficou. Devagar voltou para casa e com
persistência, um martelo velho e uma chave de parafusos torna, desmontou as
tábuas da cama. Uma a uma levou tudo para junto do colchão, e deixou a cama
desfeita empilhada entre o colchão e o contentor.
Nessa noite
dormiu na sala tapado com os cobertores.
Na manhã
seguinte, a filha antes de entrar, viu e reconheceu a cama junto ao contentor.
Achou que percebeu e concluiu que o pai não quis ficar com a cama onde morrera
o amor de toda uma vida.
Entrou e não fez
perguntas. Enquanto o pai tomava banho, fez a cama que estava no seu quarto de
solteira com os lençóis que tinha posto lavados na véspera.
-
O paizinho agora, se calhar fica melhor neste
quarto que era meu....
O Alfredo
concordou e não se voltou a falar da cama.
O colchão ficou
ainda dois dias a apanhar chuva miudinha encostado ao contentor, mas a cama foi
recolhida por uma senhora divorciada que trabalhava nas finanças, que gostava
de recuperar móveis antigos e que papava todos os programas de antiguidades nos
canais temáticos.
O Alfredo viveu
mais três anos. Estava a dormir e não deu por ela chegar. Morreu a três meses
de fazer noventa. Morreu amargurado e de tristeza, não da viuvez, mas dos
cornos daquela traição com o cunhado.
Foi naquela casa
onde morreram os dois, que cinquenta e três anos antes a coisa descambou. O
Alfredo tinha chegado de manhã, seriam uma dez horas, porque ficou a trabalhar
a noite toda. A Bárbara foi a limpar o casaco do marido e encontrou no bolso
esquerdo uma fatura de um jantar. Um frango, uma garrafa de vinho verde e pão,
no Bonjardim. Não comeram sobremesa. Percebeu que o serão que o Alfredo disse
que ficou a fazer no trabalho era uma mentira que cheirava a puta. Zangou-se,
calou-se, arranjou-se, deixou a filha com o pai e saiu para ir a casa da irmã
desabafar.
A irmã era três
anos mais nova e igualmente bonita. Foi entrando sem bater, sabia que o cunhado
não estava, que tinha tido jogo lá para o norte. A irmã tinha acabado de se
levantar. Não tinham filhos. Estava a fazer café. A Bárbara cumprimentou a irmã
e não teve tempo para dizer mais nada, uma cólica daquelas urgentes e motivadas
pelos nervos, empurrou-a para a casa de banho.
Sentou-se na
sanita e viu. A saia e a blusa nova da irmã. Roupa de sair no chão para lavar
ao lado do cesto. Pegou na blusa vermelha e cheirou. Tinha agarrado o cheiro da
irmã, do perfume dela, cheirava a frangos e ao seu Alfredo. Percebeu tudo. A
confirmar, no bolso do casaco de sair o bilhete do barco das nove da manhã. A
Bárbara defecou e chorou simultaneamente.
Depois, lavou a
cara e saiu sorridente da casa de banho.
-
Então mana, o que fizeste ontem à noite?
-
Olha tive pr’aí sozinha, ouvi o folhetim da
rádio e agarrei-me à costura!
-
Podias ter ido lá a casa, o Alfredo ficou a fazer
serão e só chegou hoje de manhã...
A irmã, nem truz nem muz...
E assim ficaram.
Mas a Bárbara jurou vingança.
Disfarçou, saiu com a desculpa que tinha de ir às compras e ficou a pensar.
Não ia deitar-se com o Dinis. Não
lhe chegava pagar na mesma moeda. Teria de ficar por cima. Não se importava de
esperar o tempo que fosse preciso, mas ia devolver aquela dor. Frango e pensão
e Lisboa... Se calhar até foram ver uma revista ao Parque Mayer. E ela que
gostava tanto daquele frango assado com batas fritas e esparregado...
Passaram-se vinte anos. A Bárbara
calada. O cunhado morreu sem avisar naquele desastre de automóvel em Águas de
Moura. No velório do cunhado, a Bárbara aplicou metade da vingança. Foi ter com
a irmã e disse-lhe:
- Mana, tenho de te contar uma
coisa, eu e o teu Dinis tivemos um caso, foi há muitos anos, mas
envolvemo-nos... Por favor perdoa-me.
A irmã, abriu muito os olhos.
Chorosa e abraçou-a. No choque da morte do marido aquela traição doeu-lhe ainda
mais. Mas nunca tocou no assunto. Continuaram irmãs e amigas. Mas a Bárbara
sabia que a farpa que espetou com vinte anos de atraso tinha batido fundo e
doía no peito da irmã. Gostava que fosse assim mesmo! Doía tanto e ainda mais
porque era um assunto que ficou calado entre as duas. Doía ainda mais porque
foi uma pancada batida num momento de grande fragilidade.
Esta está tratada, decidiu a
Bárbara.
Agora era esperar pelo momento do
Alfredo.
O Alfredo que nunca mais dormiu
com a cunhada. Uma pena para ambos. Aquilo foi uma vez sem exemplo, foram ver
uma revista, jantaram frango e ficaram numa pensão na Baixa. Fizeram amor por
desfastio e para combater o tédio dos dias. Não voltou a acontecer porque ambos
se sentiam culpados.
A Bárbara continuou à espera pelo
momento certo para devolver ao marido aquela noite de revista no Parque Mayer e
aquele frango com batatas fritas e esparregado. Esperava pelo momento de o ver
doente, a morrer... para lhe dar a novidade dos cornos na cabeça.
Mas o Alfredo, tinha uma saúde de
ferro e o destino quis levá-la antes dele. E ela à espera... Sempre à espera.
Esperou até à hora da morte, porque não podia esperar mais.
Mas antes de morrer, zonza da
medicação e cansada da doença que a matava, a Bárbara serviu ao marido na cama,
a vingança por que esperou cinquenta anos. Foi a indigesta sobremesa do frango
familiar e da revista do Parque Mayer.
Ele há mulheres capazes de tudo.
Sem comentários:
Enviar um comentário