terça-feira, 19 de novembro de 2019

PERDA, de Vanessa Lourenço















Mesmo entre seres humanos as palavras frequentemente faltavam em situações destas, e ele não era um ser humano. Era um animal, e sabia que tudo o que precisava era de ser. Porque quando o destino é duro, o silêncio fala mais alto do que o discurso. Ele era um gato, não sabia falar. Mas sabia ouvir no silêncio, tudo o que não encontrava nas palavras caminho para se expressar. Mais do que ouvir, ele sentia tudo o que não era dito. E por tudo isso, mesmo antes de o ser humano que era a sua familia entrar em casa, ele soube. Soube o que tinha acontecido, soube o que ele tinha perdido. Ouviu como a perda lhe retardava os passos, tocou-lhe no longo pêlo sedoso a amargura que se libertava da alma cansada daquele que lhe tinha salvo a vida, e estava agora de regresso a casa com um pedaço a menos no coração. Alguém que significava muito para o seu dono tinha perdido a vida, e levado com ele para o outro mundo um pedaço da história partilhada, deixando no seu lugar apenas as memórias. E o vazio da ausência.

Pensou em como gostaria de explicar que a morte não significava mais do que a curva da estrada, em como apenas o corpo se liberta do peso dos sentidos, em como para lá deles, nada mudou. Mas ele não sabia falar, e sabia que nenhuma dessas palavras aliviaria o sofrimento. Apenas aumentariam a frustração daquele que perdeu, porque o vazio foi tudo o que restou. Por isso ficou ali, sentado em frente da porta, até que ela se abrisse. E quando se abriu e o seu humano entrou, ele não se mexeu, e apenas a cauda comprida a cortar o espaço traiu a sua serenidade encenada. O dono entrou, olhou-o com os olhos marejados de lágrimas por um momento, e disse:

- Já sabes. Claro que já sabes.

Passou por ele sem se deter, hesitando apenas por um momento para lhe acariciar a cabeça felpuda, e dirigiu-se à sala. Uma vez chegado, atirou o casaco pelo ar e deixou-se cair no sofá como quem acaba de descobrir que a gravidade existe.

Acompanhou-o, em silêncio. Por uma vez, não miou. Por uma vez, ignorou a tigela vazia que aguardava a chegada de quem sempre a enchia com um sorriso, chamando-lhe comilão. Por uma vez, não correu a saltar para o sofá antes que o dono lá chegasse, e se queixasse de como deixava pêlo por todo o lado. Por uma vez, saltou para cima do sofá, e apenas esperou.
Quando procurou os olhos do humano que amava, encontrou-os perdidos; quando lhe fitou o rosto amargurado, notou os lábios entreabertos num grito que nunca chegou a acontecer, e que, no entanto, ecoou silencioso por todos os cantos da casa.

Num impulso, avançou. E silenciosamente (digno de um gato), aproximou-se e aninhou-se-lhe no colo. E ronronou. Alguns segundos depois, ouviu o dono soluçar, mas não se mexeu. Esticou-se apenas para encontrar com as patas o peito que estremecia, e ronronou de novo. Por fim, o seu humano disse:

- É um buraco tão fundo, tão feito de nada. Parece que vou cair nele e desaparecer para sempre, parece que é tudo o que existe. E, no entanto... esse ronronar embala o meu coração. Eu ainda não quero ser salvo deste luto, e, no entanto... contigo aqui, posso sofrer sem ser julgado. Sem sentir a pena dos outros. Mas sobretudo, sem estar sozinho.

O grande gato malhado aconchegou-se mais no seu colo e virou a barriga felpuda para cima, retraindo e soltando as unhas afiadas como se pressionando uma matéria sólida e invisivel qualquer. De repente, fixou os olhos no ser humano que tanto amava, e com eles lhe disse:

- A morte é uma curva no caminho. Um caminho que se estende para os que vão, e para os que ficam. E como caminho que é, leva tempo a percorrer. Deves sentir a perda, permitir que se entranhe no teu peito, deixá-la consumir-te sem reservas até que a sua força se esgote. Até que tudo o que reste, seja seguir em frente. E eu estou aqui, tu sabes que estou aqui.


Sem comentários:

Enviar um comentário