Aconteceu em Alcoutim, mil novecentos
e cinquenta e oito, as cartas tinham avisado, grande amor seguido de tragédia.
Os corvos a darem o sinal. Aquele
grasnar parvo e estridente no cimo dos pinheiros mansos que ao lado da casa no
verão fazem sombra e no inverno aparam a chuva. Foi num dia de nevoeiro em que
mesmo à tarde é sempre de manhã.
Ainda antes dos corvos a
avisarem, nessa manhã cedo, quando cortou o pescoço à galinha pedrez, o sangue
que jorrou desenhou uma seta no chão do quintal apanhando um bocado da parede
da casa, mesmo por baixo da janelinha pequenina que era a janela do quarto. Uma
seta são novidades. A Carla na altura nem reparou no recado que a galinha
escreveu ao morrer.
Mas nos corvos em cima dos
pinheiros teve mesmo de reparar: a grasnarem e a darem sinal que alguém se
aproximava pelo lado do rio. No inverno o rio ainda é mais misterioso com as
águas agitadas e escuras. Quando está nevoeiro, o rio torna-se mágico. Do lado
de lá os montes da Espanha, do lado de cá os cerros do Alentejo.
A casa onde ela vivia há já três
anos, cresceu plantada já fora da vila, uns bons trezentos metros afastada das
outras casas. Carla ouviu os corvos. Estava na cozinha a amanhar a galinha que
ia fazer em duas refeições: canja para ela ao almoço e assada no forno para o
jantar do marido. Não tinha filhos porque nunca lhe aparecerem. O marido queria
muito, mas ela não queria, secretamente tomava uns diários comprimidozinhos que
lhe arranjavam vindos de Espanha e que lhe tiravam as dores menstruais e outros
incómodos, incluindo os incómodos de uma gravidez. Com os verões a passarem e a
coisa a não se concretizar, o querer frustrado do guarda, tinha-os afastado. O
guarda vivia distante no seu universo de armas, apreensões e progressões. A
Carla sentia-se como empregada doméstica, governanta e puta em exclusivo do
marido, que mesmo não falando praticamente com ela a procurava para se
satisfazer regular e disciplinadamente ao sábado e à quarta-feira. Tinha no
baralho de cartas com que fazia paciências e lia o futuro o seu confidente. Não
sabia ler e queria aprender. Queria aprender a ler com a mesma força com que o
guarda fiscal, seu marido queria deixar descendência.
Naquela manhã, quando os corvos
gritaram com insistência, a Carla já tinha o bicho depenado e aberto, tirou-lhe
o fígado, o coração, a moela e os ovários para fazer a sopa. O fel tirou-o com
cuidado para não se romper e escondeu debaixo das penas atirando cinza para
cima para que o amargo não se espalhasse mais na sua vida. Coisas antigas que
aprendera com a avó, bruxa e curandeira em Estarreja que lhe tinha ensinado
rezas, mezinhas, a entender os sinais dos bichos e a ler o passado, o presente
e o futuro nos baralhos de cartas.
Os corvos estavam definitivamente
a anunciar gente.
O marido estava de serviço. Tinha
saído logo de manhã para o posto da Fiscal onde era cabo e mandava. O marido
mandava mais como cabo da Guarda Fiscal do que o presidente da câmara ou do que
o notário. Não que ali houvesse notário..., mas o marido mandava mais. O marido
manda, põe e dispõe. Porque o marido é a
autoridade. O cabo da Fiscal mandava e mandava muito, ali naquele ermo perdido
no cu do Alentejo, chegava a mandar mais do que alguns sargentos em Beja.
De qualquer maneira, sabia que o
marido só vinha à noite.
Sabia que o marido ia chegar às
sete da noite, ia lavar-se, depois jantava sozinho. Acabado o jantar ouviam os
dois a telefonia, ele ia dizer-lhe que se queria ir deitar e ela ia com ele.
Como era segunda-feira ele não a ia querer usar e por isso ia ler três páginas
nas letras pequenas da bíblia e adormecer. Ela ficaria acordada a pensar na
vida que leva onde não acontece nada. Ia ser assim. Para a Carla, saber como ia
ser o seu dia e a sua noite, deu-lhe uma ânsia tal que sentiu vontade de
vomitar ou de gritar ou de se atirar para o chão a chorar. Não fez nenhuma das
coisas.
Atirou as tripas quentes da
galinha para dentro da lata do lixo e os intestinos da galinha fizeram um
círculo perfeito sobre o qual caíram dois bocados de pulmões. Ela não leu o
sinal, estava demasiado ocupada com a sua dor para ler as vísceras. Por isso os
corvos voltaram a gritar para a avisarem.
Com a insistência dos pássaros, a
Carla abriu a porta da cozinha e saiu para o pátio com as mãos quentes das
vísceras da galinha a fumegarem no frio. Olhou para os lados de Espanha e do
rio e não viu nada. Uma cortina de nevoeiro denso envolvia a casa, as árvores e
o rio. Os corvos voltaram a dar sinal e o podengo veio ter com ela a abanar o
rabo. Depois o cão virou-se e ladrou para dentro do nevoeiro na direção do rio.
A Carla percebeu que se aproximava um barco. Ao longe ouvia-se os remos na
água. Ficou à espera.
Ouviu-se o barulho da madeira do
casco a bater na rocha que no inverno quando o rio ia cheio servia de ancoradouro.
Ouviu-se o som de um fardo a cair na pedra e depois dois pés pesados a pisarem
o chão molhado de pedras grandes. Outra vez os remos do barco a afastarem-se.
Passos subiram a encosta e no nevoeiro soou a respiração pesada de alguém que subia
cansado e carregado. Três minutos depois conseguiu distinguir o perfil de quem
se aproximava.
A Carla não teve medo. Qualquer
coisa que lhe acontecesse seria bem-vinda para sacudir e afastar aquele tédio
cinzento que a matava.
Era um rapaz novo que chegava.
Nem teria vinte anos. Disse bom dia em português com sotaque espanhol. Pousou
no chão o saco que carregava às costas e afagou o podengo que se esqueceu de
cumprir a sua função de cão de guarda e saltava contente às pernas do moço. A
Carla olhou-o de alto a baixo e perguntou-lhe o que queria.
-
Só passar aqui neste sítio – e apontava para
baixo para o nevoeiro e para o rio --- pois se aqui é a casa do guarda, e se o
guarda está no posto, aqui é o melhor sítio para passar.
Dito isto, soltou uma gargalhada
aberta que soou no nevoeiro calando os corvos e o podengo que persistia em
esfregar-se-lhe as botas molhadas. Apresentou-se:
-
Sou o Raul, nascido na raia de Castro Marim há
dezanove anos, três meses e seis dias, pescador quando o rio deixa, contrabandista
quase sempre, maltês às vezes, ladrão quando é preciso, mas sempre bom rapaz!
A Carla também se riu. E
soube-lhe bem rir-se, coisa que não fazia há muito tempo. Também ela se
apresentou:
-
Sou a Carla, nascida em Ovar, casada na capela
da Senhora da Natividade na Murtosa com o Cabo Justino da Guarda Fiscal. Dona
temporária desta casa, bruxa por herança, mas proibida de exercer pelo padre
que me casou. Não digo a idade porque já só me faltam dois anos para fazer os
trinta.
Limpou as mãos ainda sujas das
vísceras da galinha ao avental e estendeu os dedos na direção do
contrabandista.
Num gesto de galanteria
improvável naquele profundo fim-do-mundo, o rapaz pegou-lhe na ponta dos dedos
e levou a mão dela aos lábios. Os beijos na ponta dos dedos incendiaram a Carla
por dentro e a fogueira que se acendeu nela subiu-lhe da parte interna e baixa
da barriga até à cara que num instante ficou vermelha. Sem saber o que dizer, a
boca abriu-se quebrando o silêncio para lhe sair:
-
Vens molhado moço! Entra para te secares antes
que apanhes alguma pneumonia.
Porque era bem-mandado, o Raul
entrou pela porta da cozinha que se lhe abria e aproximou-se do lume. Ela, um
gesto de familiaridade quase maternal tirou-lhe o casaco. Depois aconteceu algo
que que só se pode justificar por um oportuno e inesperado surto de loucura: de
uma forma já nada maternal, continuou a despir o rapaz. Ele calado com os olhos
muito abertos de deslumbramento... quando ela acabou de o despir a ele,
despiu-se também, pegou-lhe na mão e levou-o para o quartinho pequeno da cama
de ferro onde passava as noites sem dormir ao lado do marido.
Aconteceu o inevitável, que
talvez fosse evitável se aquele encontro não tivesse sido assim parido naquela
manhã nevoeiro. Mas o certo é que aconteceu. E aconteceu bastante e bem feito,
diga-se em abono da verdade para os dois participantes nos factos. Tão bem
feito que quiseram repetir. E repetiram. Repetiram logo a seguir, repetiram
depois da canja e não repetiram depois do cálice de vinho do porto que a Carla
foi buscar ao armário, porque o Raul teve que ir.
Foi prometendo voltar.
Cumprindo a promessa voltou
várias vezes.
Muitas vezes.
Sobretudo nas noites em que o
cabo estava de serviço.
O rapaz passava o rio. Subia com
a carga que acomodava debaixo dos pinheiros e entrava para as sopas, o conchego
da Carla e o cálice do Porto.
Assim aconteceu durante aquele
inverno comprido.
Um dia ela disse que gostava de
aprender a ler... Ele passado duas noites apareceu com uma Cartilha João de
Deus e depois do amor, ensinou-lhe as letras.
Ela para retribuir, ensinou-lhe
os segredos das cartas e dos chás.
Ela na primavera já conseguia
juntar as sílabas, interpretar palavras e escrever o seu nome.
Ele por essa altura já tinha
aprendido a esfregar as mãos e os pés com banha de raposa para que não lhe
seguissem nem os passos nem os gestos.
O rapaz aprendia depressa as
regras da bruxaria, quase tão depressa como a bruxa aprendia a ler.
A Carla andava feliz, o Raul
andava feliz. Até o cabo da guarda se sentiu mais animado na felicidade da
mulher. Tentou aproximar-se dela, mas ela evitou-o.
Um dia, meteu-se na camioneta,
avisou a mulher que não vinha jantar e foi a Setúbal à igreja da Senhora do
Carmo oferecer uma vela à nossa Senhora do Carmo, padroeira da Guarda para que
a mulher se emprenhasse.
Quando voltou no dia seguinte,
tentou deitar-se com ela, mas mais uma vez a Carla o evitou.
A primavera chegou luminosa e o
verão apareceu quente.
Uma noite clara, quando o guarda
fiscal chegou a casa encontrou a mulher a dormir nua e destapada sobre a cama
que era dos dois. Despiu-se e abraçou-a. Eu ainda lhe retribuo o abraço, mas
depois abriu os olhos, acordou e rejeitou-o.
Ele zangou-se com ela e disse-lhe
que ela com a mania de aprender a ler, estava a perder a decência que agora até
dormia como as devassas sem camisa de noite. Ela justificou-se com o calor. Ele
pediu desculpa, coisa que para o cabo da guarda era difícil fazer e voltou a
tentar o abraço. A Carla voltou a esquivar-se.
Andaram assim uns dias, o Raul
quando chegava pergunta-lhe o que tinha. Ela dizia nada. As cartas a insistir
com o às de copas e o nove de outros: grade amor e tragédia.
Numa noite clara e quente de
verão, a Carla preparou-se para se deitar, pois, o marido devia chegar por
volta das onze da noite e ela queria poder fingir que já estava a dormir. Mas o
guarda chegou mais cedo. Vinha ébrio de vinho e desejo, agarrou-a à força e
violou-a. Ela chorou até ser dia e ele dormiu satisfeito até que o despertador
o chamasse para ir impor a sua farda.
De manhã, ela jurou que não
voltaria a acontecer.
À tarde o guarda voltou
satisfeito e percebendo que a mulher continuava em lágrimas, abraçou-a por trás
quando ela lavava a loiça dentro do alguidar de barro. Ela num movimento que
nunca saberemos se foi premeditado ou instintivo, voltou-se com uma faca na mão
e tentou esfaquear o guarda que lhe deu uma bofetada tremenda. A bofetada fê-la
cair quando bateu com a cabeça no chão encontrou a morte que as cartas lhe
tinham anunciado.
O Justino, cabo da Fiscal teve de
chamar a Republicana. Depois veio um médico.
Um acidente, assim determinou o
relatório assinado pelo médico que ignorou as marcas dos dedos do cabo na face
da morte. Ela caiu. Escorregou na água com sabão que molhava o chão e aconteceu
o trágico acidente.
O cabo da guarda Justino, depois
do funeral da mulher, foi embebedar-se. De dor, disseram compreensivos os que assistiram.
De remorsos, disseram as cartas
ao Raul.
A bebedeira continuo e durou mais
seis anos. O tempo de a morte chegar por cirrose, antes ainda da destituição e
expulsão da guarda.
O Raul quando soube da tragédia
ficou doente. Febres e dores no corpo que o deitaram na cama durante três dias.
Depois levantou-se e andou pelos matos perdido durante uma semana, falava para
as pedras e para as moitas. Os pássaros respondiam-lhe. Voltou feito bicho,
parecia um ermitão.
Hoje é um cavalheiro com mais de
oitenta anos que construiu um império no sotavento algarvio. De contrabandista,
a comerciante, de comerciante a empresário e de empresário ao velhinho sábio e
supersticioso que é hoje. Vive rodeado dos filhos, dos netos e dos bisnetos.
Uma tarde, antes de me contar a
história da sua vida, perguntei-lhe:
-
Senhor Raul, arrepende-se de alguma coisa na sua
vida?
-
De não ter morto um cabrão dum guarda!