É
mais um dia que amanhece. Um dia igual a tantos outros que tenho vivido nos
últimos meses ou será que já se passaram anos? É sempre uma incógnita;
infelizmente, o tempo há muito que parou de contar para mim: quase nunca sei as
horas e engano-me sempre nos dias da semana. Acordo, vejo a luz do dia, lá
longe, do outro lado da pequena e redonda janela: velha, ferrugenta e gasta e
de vidros baços, tristes e em desalinho. E convivo, de imediato, com a
incerteza e o medo de mais umas longas horas de luta pela sobrevivência, pela
dignidade e acima de tudo pela liberdade. Quero muito e desejo com todas as
minhas forças alcançar o que está para lá desta remota janela, poder
transformar o desconhecido de hoje, em tudo aquilo que desde sempre conheci.
Sinto-me como se tivesse deixado de saber de que é que é feito o mundo, como é
a natureza, com que intensidade brilha o sol, qual é o peso da chuva, a sua
cor, o seu sabor. Quero fugir daqui; parar de sofrer; recomeçar de novo, mudar
de vida, sentir que existo.
Não
sei o meu verdadeiro nome; apenas sei que aqui me dão o nome de Gabriela. Será
esse o meu nome? Também não sei se tenho família, a quem possa perguntar como
me chamo, onde nasci, de onde venho e para onde vou; para mim, o significado de
família são este grupo de pessoas que convivem comigo desde que me lembro de
ser gente.
Por
vezes tenho frio, outras vezes tenho calor; no entanto, não tenho direito a
reclamar nem por um simples agasalho, dizem-me logo que pessoas como eu não
merecem nem um farrapo para vestir; é a única coisa que cobre o meu corpo
fraco, frágil, flácido e magro. Tenho que aguentar desnuda e descalça. Já não
reconheço a imagem de mim que o espelho, raras vezes, me devolve: estou suja,
desnutrida, desmotivada, desprovida de alegria, de sentimentos, de força, de
sonhos e de vontade de viver, de acreditar e de ter esperança. Não sei,
realmente, quem sou… Isto não é viver. Não quero viver assim. A vida não é
isto.
Para
além da liberdade, também me foi roubado o direito a receber tratamentos em
caso de doença, o singelo direito à saúde. Recentemente, adoeci, contorcia-me
com dores e tremores provocados pela febre alta; implorei que me levassem a um
hospital porque já não aguentava mais. Coube-me o direito de não ripostar, de
ser surda e muda e de suportar tudo mais uma vez; se não queria ser castigada e
punida com um dia inteiro sem comer, e ficar acorrentada no quarto escuro
destinado aos desobedientes e desagradecidos…. Curei sozinha e com o tempo, se
quis.
Entretanto
ouço chamar-me, está na hora de me confrontar com a realidade nua e crua da
vida, de ir oferecer o corpo ao manifesto se quero ter direito a umas gotas de
água e a uma mísera comida: podre e putrefacta que nem o mais vadio dos animais
aceitaria comer. Não tenho direito a hesitar, a recusar, a ter medos ou a
queixar-me, sou mesmo obrigada a ir: a bem ou a mal; caso contrário, sou
arrastada à força por um braço, quando não é pelos cabelos, numa brutalidade
extrema. Dizem que é o meu dever, resta-me aceitar o meu destino; afinal de
contas, sou apenas uma simples moeda de troca. É pegar ou largar. Recebo o que
me dão, pondo o meu instrumento de trabalho à disposição. Neste submundo não
somos merecedores de o mínimo de respeito.
Todos
os dias choro, sem ninguém saber e sem ninguém ver; porque neste mundo, pessoas
como eu não têm direito a chorar, a sentirem-se tristes e cansadas. Não temos
direito a confessar que hoje não nos apetece. Temos que ter vontade. Sempre.
Também não há direito a protecção, quantas vezes tenho desejado poder ter, por
vezes, um daqueles abraços apertados que confortam e aconchegam nos dias mais
críticos e difíceis da vida e que nos fazem sentir que num dia qualquer, tudo
vai acabar bem; mas, infelizmente, ainda não vejo esse dia a aproximar-se. Vivo
uma vida cheia de incertezas.
Praticamente,
não sei ler e muito menos escrever, andei muito pouco tempo na escola; aliás,
quando alguém ousa abordar o forte desejo que sente de querer ir para a escola,
somos alvo de chacota. Pessoas como nós, não têm direito à educação, dizem que
aquilo que nos ensinam (será a escravatura um novo método de ensino?) é
suficiente para fazermos o nosso trabalho. Não concordo; porém, já aprendi a
não fazer comentários, a não ripostar, nem me manifestar. É aceitar, calar e
mais nada. Não temos direito a partilhar o que pensamos….
Entrei neste submundo
cedo demais para a minha idade; por vezes, eu sinto que o meu destino há muito
que estava traçado.
Felizmente
ou infelizmente, ainda não me foi roubado o direito a sonhar; pelo menos
enquanto sonho vivo uma vida diferente: uma vida onde nenhum direito me é
roubado, onde sou feliz e livre para fazer aquilo que eu quiser e para tomar
toda e qualquer decisão acerca do meu corpo. Quando é que tudo isto acaba?
Gostava
de ter coragem para fugir daqui sem ter medo das consequências; apesar de nos
ter sido dito que se tentarmos fugir eles só descansarão quando nos matarem,
vivo num beco sem saída e em sobressalto permanente, pois, no dia em que der um
passo em falso não sei o que me pode acontecer. Mas a vontade de fugir é muita,
mesmo que me sinta como se fosse um ser sem identidade, pois, para além do
farrapo que cobre o meu corpo massacrado não tenho mais nada. Tiraram-nos os
nossos documentos pessoais; por isso, é como se não existíssemos. Um
contrassenso de haver quem tenha tudo e quem não possa ter nada.
Batem à porta e pousam no
chão um tabuleiro velho. O dia foi bom, tenho direito a uma pequena carcaça
tártara, sem nada, e a meio copo de água. Hoje o meu corpo vai ter uma força
extra para o novo dia que está prestes a chegar amanhã. Como, lentamente,
contrariando a fome que me consome, para que a comida perdure; não interessa o
sabor, importa matar a fome.
De
repente, tudo muda. A algazarra é grande, trazendo novamente o medo ao meu
redor. Alguém entra na divisão onde me encontro com palavras meigas e doces,
que já não me recordava que pudessem existir, dizendo-me que vai ficar tudo bem
(finalmente, vai ficar tudo bem), que não me querem fazer mal e que pretendem
ajudar-me. Vejo solidariedade naqueles olhos, acredito e confio. Cobrem o meu
corpo com uma manta: quente e macia e levam-me em braços rumo à liberdade e ao
lusco-fusco daquele pesado dia.
Entro
num carro que desconheço, mas onde sou recebida por mais algumas pessoas de
preocupação visível no rosto; friccionam o meu corpo para me ajudarem a aquecer
e o meu olhar cruza-se com o de outras raparigas, iguais a mim. Encosto-me no
assento, desfrutando daquele conforto inexistente na minha vida até àquele
momento, deixo que o meu olhar se perca desde a janela, despedindo-me em
silêncio daquilo que foi a minha vida nos últimos anos, consigo esboçar um leve
sorriso, mesmo cansada da vida e de ser mulher e as lágrimas de emoção limpam o
meu rosto negro da sujidade e marcado pelo desrespeito e pelas consecutivas
torturas. Renasço, pronta para recomeçar tudo do zero e rescrever a minha
história. Quero ser capaz de o fazer e de consegui-lo.
Adormeço
perdida no tempo e quando acordo sou embalada naquele tão desejado abraço de
conforto, aconchego e perdão. Agora sei quem sou e onde é o meu verdadeiro
lugar.
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