Estávamos em abril e a primavera
tinha chegado quente. Navegava num Clio com cinco velocidades e três portas.
Saí depois de jantar e fiz-me à estrada. Estava uma noite sem vento e a lua
cheia iluminava a estrada que foi ficando para trás.
Como mantimentos, levava um termo
de chá preto, ovos cozidos, um pão alentejano e cigarros. Foi ainda no século
passado e navegava solitário. A banda sonora eram duas cassetes: o Dylan e a
Brigada Vítor Jara.
Em Badajoz enchi o depósito
porque naquele tempo o combustível era mais barato em Espanha. Coisas de outros
séculos...
Atravessei o estreito ao nascer
do dia no primeiro navio para África.
O sol nasceu do lado do
Mediterrâneo e a noite fugiu para o Atlântico. O carro no porão e eu no bar do
ferry a beber chá preto e a ver a paisagem.
Em Ceuta não me demorei, foi o
tempo de comprar um pack de tabaco e chegar à fronteira com o Reino de
Marrocos. Passaporte, documentos do carro e o papelinho preenchido com dados
mais ou menos inventados sobre itinerários e locais onde pretendia alojar-me.
Uma hora de burocracia aduaneira. Segui para sul. De Ceuta a Tanger é um
pulinho. O Atlântico a bombordo a acompanhar.
A proa apontada para Arzila.
Turistas alemães colonizavam a esplanada da fortaleza. Dealers de terceira
categoria tentavam impingir haxixe manhoso. Desgostei dos ares e aproveitando o
vento, levantei ferro.
O sol alto encadeava e a noite em
branco ao volante fez-se sentir. Numa bomba de gasolina, abasteci, pus o banco
para trás e devo ter dormido duas ou três horas. Acordei ao anoitecer com um
gajo a bater no vidro a querer vender-me queijo fresco. Comprei o queijo ao
homem. Ainda tinha pão, mas já se tinham acabado os ovos cozidos. O queijo era
bom, de cabra temperado com orégãos.
Segui viagem para sul. Rumando a
Kenitra, ponto de paragem das naus para abastecerem de água e frescos e lugar
onde queria ancorar porque tinha um amigo de um amigo que me ia mostrar as
vistas.
Cheguei a Kenitra já noite
cerrada. Deviam ser uma onze ou meia-noite. Definitivamente já não era hora
para telefonar para casa de ninguém. Naquele tempo ainda não haviam telemóveis
ou se haviam não eram para o mim. O meu contacto em Kenitra era um amigo de um
amigo que tinha estudado medicina veterinária na União Soviética. O muro havia
caído há meia dúzia de anos, mas alguns laços ainda se mantinham. Eu estava
cansado, por isso decidi procurar alojar-me e na manhã seguinte faria o
telefonema.
Kenitra fica encostada ao mar
numa planície agrícola com pomares e hortas à volta de ribeiros. De carro
deambulei pelo centro da cidade adormecida. Pouca gente nas ruas, pouquíssimos
carros a circular. Perto da praia vi um letreiro iluminado que dizia Hotel
Atlantic com duas estrelinhas azuis a classificarem as instalações. Agradou-me
o parque de estacionamento. Parei e entrei. Na receção, que funcionava no vão
das escadas, um balcão anormalmente largo onde estava deitado um homem a
dormir. O recepcionista ressonava aconchegado com um cobertor e um livro de
registos ao lado.
Não deu pela minha entrada.
Bati devagar no balcão-cama.
Acordou e falou-me em árabe.
Disse-lhe boa noite em português e ele perguntou-me o que é que eu queria em
francês. Expliquei-lhe que queria um duche e quarto para dormir. Deu-me o livro
de registos para preencher e uma chave atada a um bocado de madeira onde estava
escrito o número doze. Primeiro andar, segunda porta do corredor. Subi com a
mochila ao ombro. O quarto tinha o teto alto, chão de mosaicos, uma varanda a
toda a largura, uma cama, um cabide e um chuveiro no canto diretamente para o
chão. Mais nada. Banhei-me e dormi como um anjinho que era então e que às vezes
ainda sou.
No dia seguinte liguei ao amigo
do amigo. Disse-lhe onde estava alojado: Hotel Atlantic. Ele riu-se e
explicou-me que era um bordel, mas que estava bem entregue porque é um sítio
seguro, limpo e barato. Passado meia hora buscar-me e levou-me a ver os seus
pacientes: cavalos e camelos. Depois fomos almoçar, cabrito assado e vinho
tinto feito em Marrocos servido em garrafas de coca-cola. O vinho era bom e
acompanhava bem com o cabrito. A tarde passámos na mesa a comer, beber e
contarmos histórias... até nos virem interromper para que o meu anfitrião fosse
atender uma doente. Seguimos para uma quinta nos arrabaldes onde ao anoitecer,
assisti ao milagre de vida ajudando na cesariana de uma camela. Ali mesmo, no
chão de terra, com uma lona no chão a servir de mesa de cirurgia. Primeiro a
camela foi anestesiada, depois com jeitinho foi deitada na lona. Eu segurei a
lanterna, o dono da camela trouxe água quente e o meu amigo veterinário rapou o
ventre inchado do animal e com o bisturi fez o corte de onde tirou o
camelozinho. Depois cozeu o golpe, limpou, desinfectou e deu uma injeção para a
mãe camela acordar. O camelo bebé ficou de pé a mamar na mãe quando nós viemos
embora. Já tinha passado da hora de jantar e não tínhamos fome. Por isso fomos
beber vodkas a um bar clandestino. Para ensopar o vodka comemos harira que é
uma sopa de grão com borrego, uma sopa grossa que sabe a cominhos, picante e
limão. Voltámos ao vinho tinto a acompanhar o queijo de cabra que sobrava com o
pão alentejano sobrevivente. O vinho
temperado pela proibição ainda sabia melhor.
Voltei nem eu sei bem como para o
hotel eu dormi enquanto se vendia o amor. Na manhã seguinte, quando quis pagar
as duas noites, não deixaram, explicaram que estava paga a estadia pelo senhor
proprietário da camela.
Voltei à estrada. Virei à
esquerda para leste. Direção Alkzar er Kirb, Alcácer Quibir do Sebastião
desaparecido.
Quis desviar-me de Rabat onde o
rei governava com mão de ferro. Evitei a Casablanca caótica com o seu trânsito
de cidade grande. Meti-me por estradas estreitas e poeirentas entre planícies
cultivadas e aldeias de beira de estrada
Em Alcácer Quibir comi e não
achei, nem vestígios lusos, nem restos da armadura do rei desaparecido.
Agro-negócio e armazéns tipo mercearias. Burros, camelos e homens. Calor, pó e
demasiado longe do mar. Depois de almoçar carne grelhada, dormi a sesta dentro
do carro à sombra de uma arvore centenária. Acordei cheio de energia e decidi
continuar.
Segui para sudoeste, direção ao
mar, direção a El Jadida. Queria ficar em Marzagão onde sabia que parava outro
amigo de um amigo. Um holandês que se tinha apaixonado por Marrocos e que tinha
um barco onde morava e que vivia de alugar o barco para viagens. Cheguei ao
final do dia. Procurei o amigo do amigo. Não estava. Tinha zarpado há dois dias
com americanos ricos com destino às Canárias. Fui ver onde ficar. Aluguei um
quarto numa pensão baratinha perto de porto de pesca e fui jantar. Uma tasca
com mesas compridas onde serviam peixe frito diretamente em cima da toalha de
oleado. O peixe acompanhava com pão. Encontrei uns espanhóis ganzados com quem
bebi jerez e partilhei uma garrafa de porto. Apareceram outros com wiskie
marado. Bebemos todos demais.
No outro dia de manhã acordei com
uma ressaca deste tamanho. Tomei um pequeno almoço de sumo de laranja e fui
para a lota ver o peixe chegar.
Traineiras terceiro-mundistas
descarregavam pescado de grande qualidade. Cabazes de verga com tecas
misturadas. Robalos, cavalas, garoupas, corvinas, pescadas, carapaus e
sardinhas tudo ao molho. Entre as caixas uma dourada chamou por mim. Mais de um
quilo de dourada. Comprei-a barata pelo valor de uns três litros de gasolina.
Fui procurar carvão e pelo caminho comprei dois tomates maduros, pão e
azeitonas. Acendi o lume na areia da praia. Estava calor, mas não excessivo.
Assei a dourada devagar e, sentado na areia, comi o melhor peixe assado da
minha vida. Lavei as mãos e a boca na água do mar e reconfortado decidi ir ver
a cidade.
Já quase não tinha ressaca. Tinha
lido sobre a conquista e reconquista de Marzagão. Os livros marroquinos
editados em francês, falavam na fortaleza portuguesa e na cisterna portuguesa.
Fui ver onde eram.
Um homem com um cartão ao peito a
dizer guia-oficial queria impingir-me uma visita guiada onde eu pagava para ir
a ver as mesmas coisas que podia olhar à borla. Recusei. Acompanhou-me durante
uns passos na sua insistência. Quando percebeu que eu era português e que não
lhe ia comprar nada, apontou para uma muralha antiga e disse:
-- Foi ali que penduramos os 18
portugueses!
A frase soou-me como uma
vingançazinha histórica por eu não alinhar no negócio que me propunha.
Para o calar respondi:
-- Se quiseres temos lá mais para
enforcar, e olha, faço-te barato por ser para ti, e todas as semanas te posso
mandar outros dezoito que não esgotamos o nosso stock de filhos da puta!
Entretanto mudámos de século e de
milénio. Muitas luas passaram depois desta conversa com o guia-oficial de El
Jadida. Muita coisa se alterou, outras coisas permanecem. Se há produto que
continuamos a ter de sobra para exportação nesta terra molhada de sal atlântico
são filhos da puta para pendurar. E não me parece que estejam em vias de extinção.
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