Passaram muitos anos, mas a Teresa tem a certeza que não foi um sonho,
tem a certeza que estava acordada. E mesmo que não estivesse, que importância
tem um encontro noturno cinquenta anos depois, se foi sonhado ou vivido? Para
ela as memórias são claras.
A Teresa tem a certeza que estava acordada e que não sonhou.
Era uma miúda, tinha dezoito anos feitos há meses. Mas lembra-se como
se tivesse sido hoje, como se tivesse sido há bocadinho. Passaram quase
cinquenta anos desde aquela noite, mas ela lembra-se bem. Lembra-se de tudo até
aos mais ínfimos detalhes. Veio tudo à memória como um filme. Reviu e reviveu
tudo na sua cabeça esta manhã bem cedo, quando a enfermeira Sandra lhe veio mudar
o soro.
Lembra-se até da roupa que tinha vestida naquela noite de agosto de
1973. Tinha umas calças de ganga que toda a gente lhe dizia que lhe ficavam
bem, tinha uma túnica vermelha e amarela que o pai lhe tinha trazido de uma
viagem a Luanda e tinha umas socas brancas com taxas douradas. Foi durante
aquelas férias de verão, no hotel na Praia da Rocha. As férias de verão que
mais a marcaram para a vida. Essas férias estiveram sempre presentes na sua
memória, mas aquele episódio em concreto, naquela noite, foi-lhe apagado e só
voltou nesta manhã. Mas agora lembra-se bem. Lembra-se de tudo.
Estava uma noite quente e sem lua. Foi na Praia da Rocha, ainda a
Praia da Rocha era a Praia da Rocha, um lugar especial e reservado para as
classes altas. A praia quase isolada com meia dúzia de hotéis e sem ser o que
depois fizeram dela.
Ela estava com a melhor amiga, a Paula. Estavam com um grupo de amigos
ingleses. Eram ambas lindas, rebeldes e ricas a descobrirem a liberdade que os
papás financiavam nas areias do Algarve. Nessa noite beberam Mateus Rosé,
fumaram em roda um proibidíssimo charro de uma erva e havia alguém a tocar uma
guitarra. Ela tinha acabado de entrar na faculdade de direito de Lisboa,
considerava-se uma livre-pensadora, mas não era mais do que uma burguesinha bem-intencionada.
O pai, advogado rico e bem relacionado, tinha vindo a aproximar-se da oposição
democrática como ditavam as modas burguesas daquele ano. Por coerência e
civilização fazia por dar liberdade à filha.
A mãe criticava a soltura dos tempos ié-ié, mas estava solidária com as
amigas da canastra e nas noites do Algarve abria mão da moral conservadora
dando liberdade à menina. Agora mais descansada porque o namorico da filha com
o furriel comuna tinha terminado com a ida do barbudo para a Guiné.
A Tété aproveitava a liberdade. Não sofria de amores ao contrário do
que os pais pensavam. No furriel, pouco pensava. O tal furriel que não era comunista,
mas sim maoísta, tinha sido um caso superficial. Ambos tinham decidido não ter
um namoro burguês. A Teresa, na realidade tinha saído com ele mais para chatear
os pais e para marcar uma posição de rebelde do que por afeto. Também precisava
de uma razão para começar a tomar a pílula e o rapaz servia perfeitamente para
isso. Nessas férias de verão embebedou-se pela primeira vez e pela primeira vez
experimentou o sabor quente e orgânico da liamba. Também nessas férias, pela
primeira vez amou na praia só porque lhe apetecia. A liberdade era boa…
sobretudo sem contas para pagar e a Tété desfrutava.
Foi hoje de manhã que lhe vieram à memória todos os detalhes daquela
noite. Lembrou-se que não lhe apeteceu ficar com o inglês com quem tinha
passado a tarde. Ele a falar-lhe dos Pink Floyd e ela com vontade de amar na
água fria entre as rochas. Depois, à noite era ele que queria amar e ela que
não queria. Aproveitou o pretexto de ter de fazer xixi e afastou-se do grupo
para junto de umas rochas grandes que ainda lá estão. Lembra-se que ficou a
olhar as estrelas e a pensar nos encontros e desencontros do amor.
Deitou-se na areia húmida a ver o céu escuro com pontinhos luminosos
ao longe e ficou a sentir a água das ondas mansas que quase lhe molhavam os
pés.
Foi então que aconteceu.
Ouviu aquele som, um canto. Um suave quanto. Suave, mas forte e
profundo. Parecia vindo do fundo do mar. A Teresa não teve medo. Lembra-se bem
que se sentou e ficou a olhar para as águas escuras. Viu que era uma mulher a
cantar dentro de água. Uma mulher madura, grande, negra e linda. A mulher
estava nua e a água dava-lhe pelo umbigo. A pele era tão escura como a noite,
via-se o perfil dos peitos grandes e perfeitos, o branco dos dentes pequenos de
peixe e o branco dos olhos escuros e brilhantes. Não lhe via a cara, mas
percebia que a mulher sorria.
Lembra-se que se levantou e que deu dois passos para dentro de água. A
senhora que cantava, com a mão aberta mandou-a parar e continuou a cantar. E
ela ficou ali, de pé, com as ondas a virem lamber-lhe os tornozelos e as
canelas. Deixou-se ficar a ouvir.
A canção era numa língua desconhecida, mas a Teresa percebeu o sentido
de todas as palavras.
Vais ser mãe de dois filhos e avó de três netas. Vais ser mãe da tua
mãe. Aproveita o convívio com o teu pai que será breve. Terás uma vida
confortável e encontrarás o amor nos teus pais, filhos e netos. Vais viver três
casamentos, dois divórcios e uma viuvez. Amarás por períodos curtos e intensos.
A tua vida vai ser cheia, mas partirás demasiado cedo para os que te querem.
Vais perceber que vais morrer quando te disserem que estás doente, mas que vão
fazer tudo para te curar. Esquecerás tudo o que te disse agora durante muitos
anos. Quando te lembrares deste momento, saberás que o momento está próximo.
Vais ver-me no corpo de outra pessoa que cuidará de ti, e nesse momento
perceberás que chegou a tua hora. Não tenhas medo. A morte é como um mergulho
num mar tépido numa noite de verão. Agora volta a deitar-te na areia, dorme e
esquece que falámos.
A Senhora disse tudo isto à Teresa no seu canto noturno.
Depois, deixou de cantar e por um segundo ficaram a olhar-se as duas
com um sorriso cúmplice e afetuoso entre ambas. Acabado esse breve tempo, a
Senhora virou as costas nuas e mergulhou nadando para o fundo. No fim das
costas, em vez de um rabo proporcional à beleza, estava o corpo de uma corvina
grande, com escamas de cor preta que refletiam as estrelas. Foi a cauda de um
peixe grande a última coisa que a Teresa viu a desaparecer no mar.
Depois deitou-se na praia e adormeceu. E não voltou a lembrar-se desse
encontro esta manhã.
Foi a Paula que a acordou. Tété, são quase cinco horas e está a ficar
de dia... temos de ir.
Foram.
O verão passou a correr. No outono e inverno seguinte o primeiro ano
de direito. A Teresa a marcar presença com o seu brilhantismo e a sua beleza
rebelde. Depois, na primavera veio a revolução. A Teresa entrou de cabeça na
vida política militando no MRPP que era o que lhe parecia mais radical. Acabado
o curso, deixou-se de políticas, casou e ficou a trabalhar com o pai. Foram
breves aqueles meses de felicidade de recém-casada, enquanto fazia o estágio.
Depois o patrono, patrão e papá decidiu morrer com um filho da puta de um
cancro que não deu tempo de avisar ninguém e lhe deixou o escritório e a
clientela. Ela ficou sozinha a mandar no escritório onde também trabalhava o
jovem marido. A competição quebrou a paixão e seguindo a moda do final dos anos
setenta, a Teresa separou-se, não sem antes parir um rapaz. O seu filho mais
velho, de um menino calado, cresceu para um biólogo-marinho calado, que lhe deu
três netas lindas que fazem a sua felicidade. Dois anos depois, casou-se
novamente com um amigo de adolescência que era gestor de fortunas. Estava-se
nos anos oitenta, o gestor já tinha uma filha e quis um filho. A Teresa deu-lhe
o filho e deu-lhe o divórcio quando percebeu que o gestor gastava mais do que o
que ganhava e queria gastar o património da família. Criou os dois rapazes
sozinha. O segundo filho, frágil e sensível, fez um curso de cozinha e vive em
Barcelona com um namorado catalão. Têm um restaurante de luxo onde a Teresa vai
com frequência. Já ultrapassada a barreira dos cinquenta, a ainda bela Tété
voltou a casar-se com um colega e amigo com quem viveu doze anos de
cumplicidade e doméstica felicidade, uma harmonia discreta que terminou na
manhã em que a Teresa acordou viúva e o marido acordou morto.
Depois foram mais meia-dúzia de anos em viagens aos Açores para estar
com o filho e com as netas e escapadas a Barcelona para ver o seu filho mais
novo e sair da rotina. De resto, tem sido trabalhar e tratar da mãe que já velhota,
resiste vivendo na sua própria casa e que é preciso ir acompanhando estando
presente. Foi assim até há coisa de dois meses.
Andava já há uns tempos a sentir-se esquisita. Há dois meses fez
exames e chumbou. Descobriram-lhe qualquer coisa. Qualquer coisa má. Entretanto
fizeram-lhe mais exames para confirmar. Confirmou-se o pior. Avisou os filhos e
disse à mãe que precisava de se tratar.
Na semana passada começou a ter dores. Internou-se numa clínica
privada caríssima. Os filhos vieram ter com ela. Estão a dar-lhe medicação.
O médico, um velho amigo, íntimo com quem em tempos teve um caso, foi
claro quando chegaram os resultados que reconfirmavam a prova dos exames.
-
Tété, tu és minha amiga, não te vou mentir. Não
te vou tratar porque não há tratamento. Ambos sabemos quem somos e o que
queremos. Vou aliviar-te as dores. Não quero que sofras.
Ambos ficaram calados depois da conversa que terminou ali.
Ambos sabiam quem eram.
O médico falou com as enfermeiras: aquela senhora que está no quarto
número 9 é minha amiga, não quero que sofra... assumo toda a responsabilidade,
mas quero que lhe sejam administradas as dosagens que forem precisas para que a
Dra. Teresa não sofra.
E assim tem acontecido. Não tem tido dores. Tem dormido, sonhado,
dormido e sonhado mais. O cérebro entre o sono e a vigília, a ir buscar coisas
antigas de infância e de adolescência... coisas arrumadas há muito nos cantos poeirentos
da memória... Hoje de manhã, aquela memória da noite na Praia da Rocha. Como se
o cérebro fizesse as despedidas que a Teresa não pôde fazer.
Hoje o turno mudou às dezasseis. A enfermeira Mara, veio pela primeira
vez ao quarto nove. É uma mulher madura, uma excelente enfermeira, muito
competente. Tem o corpo grande é negra e linda e trata os doentes com um misto
de autoridade e carinho que lhes dá a segurança que precisam. Quando a
enfermeira Mara entrou, perguntou à doente como se sentia.
A Teresa, abriu muito os olhos e disse que não tinha medo.
-
Não tenho medo Senhora, não tenho medo,
lembrei-me de tudo... vou sem medo dar o meu mergulho...
A enfermeira, com experiência dos seus quase vinte anos de trabalho,
percebeu que a paciente estava a delirar. Segurou a mão da Teresa, fez-lhe um
carinho na face, disse que sim e saiu.
Neste momento, o médico está a escrever no atestado de óbito que o
local da morte é na morada da clínica onde é diretor. Sabemos que é mentira.
Sabemos não foi ali naquela cama que a Teté morreu. Sabemos que a Teresa,
depois de falar com a enfermeira Mara, levantou-se da cama, arrancou o soro do braço
picado e mergulhou na noite nas águas do Atlântico algarvio.
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