Os
Ventos de Abril não trouxeram apenas a liberdade para o país, acompanhando
essas mudanças, eu própria mudava também.
“Ainda
escutava a voz da minha mãe na minha cabeça, mas era uma voz cada vez mais longínqua.
Quanto mais perto de mim ela estava, mais remota era a sua voz.
Sentia
a rédea curta do cordão umbilical, mas era cada dia mais tenso, esticado, tinha
medo de puxar com força com receio de provocar um sangramento doloroso.
Esticava-o devagarinho, agitava o corpo na esperança de que ele se soltasse. Mas
nada pode mudar sem provocar alguma dor e sentimentos de dúvida e desamparo. Porém,
se não forem amputados, esses laços apodrecem e gangrenam. Separados cada alma
cresce livre e procura o seu caminho. É assim que a natureza determina e o
espírito precisa.
Por
vezes apetecia-me correr sem pensar nesse fio castrador e provocar uma
hemorragia mortal. Outras vezes sentia-me pequenina e só queria voltar ao
ventre protector, onde não tinha que pensar ou fazer escolhas.
Incoerências
de uma alma à procura de si própria.
Para
ela também devia ser doloroso abrir as mãos e aceitar o descerrar das asas dos
filhotes. E por vezes essa dor se manifesta dando mostras de decepção causando
sentimentos de culpa nos filhos por pretenderem sair à procura da sua
liberdade. Não é falta de amor o que os leva, é amor pela vida. Ninguém pode
viver a vida dos outros.
Ela
era o ser que eu mais amava, mas era a pessoa mais difícil de agradar. Estava
decidida a levar-nos a todos para o Céu, e para isso, tentava apoderar-se do
nosso espírito e negava-nos o livre arbítrio.
Para
ela só havia um caminho, uma linha recta, uma estrada segura sem paisagens nem
desvios. Eu escolhi uma estrada de altos e baixos, com paisagens e precipícios
onde pudesse apreciar o desconhecido. Como um peregrino, dei os primeiros
passos, insegura, o medo fez-me deixar marcas com reticências, caso quisesse
voltar. E voltei, algumas vezes retrocedi, mas as marcas tinham perdido as
reticências, tinham sido arrancadas pelo vento, ou levadas pelos pássaros, e eu
já não era a mesma pessoa.
Ao
longo da minha jornada algumas vezes quis voltar, mas não quis. Ao longo da
marcha fortaleciam-se os músculos e o espírito. Cresciam sonhos como asas.
O que importava não era chegar, mas aprender
na caminhada, olhar para trás e admirar as montanhas, vales e precipícios
ultrapassados. Sorrir, e continuar a andar.”
In:
A Filha da Mãe- Os pedacinhos que faltavam
Chiado
Books-2018
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