Diz-se muita coisa. Por isso fomos ver. Estávamos naquela
altura do começo da primavera, com dias secos de sol ameno e noites limpas e
geladas.
Dois sacos-cama, os cães e meia-dúzia de mantimentos na mala
do carro. Numa manhã de sol seguimos rumo à planície esquecida. Do subúrbio ao
profundo rural.
No Google víamos toda aquela água ali pronta a matar a sede
de quem tem fome.
Água doce como mel em terra seca e amarga de velhos
solitários.
Quando se começou a construir o Alqueva, políticos grandes e
pequeninos anunciavam um novo mundo de prosperidade e fartura para um Alentejo
velho e mirrado de gentes. São bons a anunciar futuros radiantes, os políticos.
No início do milénio o dinheiro ia chegando, às vezes em jorro outras vezes a
conta-gotas, sempre hipotecando os nossos bolsos coletivos. E a água foi
subindo nas terras de sequeiro. Depois acabou-se o beiral a pingar dinheiro e
veio a crise, mas o Alqueva já lá estava.
Nós chegámos antes do almoço. Na aldeia vazia, a mercearia
era o epicentro da vida. Sotaques cerrados e rostos fechados que se foram
abrindo.
Não, não viemos comprar terrenos, nem casas antigas para
reconstruir.
Comprámos carvão, ovos, chouriço para assar, alhos, pão e
fruta.
Falaram-nos dos hóteis que dizem que se vão construir.
– Onde?
– Lá me
baixo, na barragem.
– Nós não
procuramos hotel, viemos só ver a barragem.
Despedimo-nos e seguimos a pé para comprar vinho. Na
taberna, sem rótulo, dentro de uma garrafa de litro e meio de água vazia. Tinto,
naturalmente. Trouxemos também uns queijinhos duros e salgados.
Depois montámos na mula mecânica que nos transporta e
descemos pelo estaradão de terra até à àgua. Escolhemos uma sombra uns metros
acima da linha da água para deixar a carrinha. Acendi o lume e soltei os cães.
Tirámos fotografias à barragem que ali nasceu e ali ficou.
Olhámos à volta e o vazio absoluto respondeu-nos com
silêncio.
Acendi um lume rasteiro entre pedras e assámos o chouriço.
Comemos com pão, fruta e vinho. Depois, a sesta numa rede montada entre
sobreiros.
Na tarde calma, caminhámos na borda d’água espiando os
pássaros e ouvindo os sons esquivos do grande lago. Pegadas de perdiz, raposa e
eventualmente texugo, ou arminho. Pelo caminho, apanhámos poejo, hortelã e umas
laranjas ácidas com tamanho de tangerinas de uma larangeira meio selvagem e
esquecida.
Cansados e felizes, voltámos para junto da carrinha, estava
o sol a baixar. Vimos o pôr do sol sobre as águas mansas. Reacendemos a
fogueira porque era preciso fazer o jantar e o frio da noite chegou sem pedir
licença.
As estrelas acenderam-se no céu. Dentro de um púcaro grande,
sobre as chamas, deitei àgua para ferver. Num tacho velho de muitas andanças, o
pão que sobrou do almoço partido aos bocadinhos, dois dentes de alhos migados,
azeite, os poejos e uma folha de hortelã. A água a ferver no tacho sobre as
chamas da fogueira chamou os ovos para escalfar. A açorda é sempre comida de
conforto, sobretudo quando o tempo arrefece e a noite cai sem lua.
Toda aquela água à nossa frente, parada, a refletir o brilho
das estrelas alentejanas. Os cães deitados à nossa volta davam uma sensação
doméstica à cena. Ali ficámos, a beberricar do tinto naquela conversa sem fim
de quem se escolheu, entre outras coisas, para conversar até ao fim da vida.
Perdemos a noção das horas e não sabemos quando fomos dormir.
Mas sabemos quando acordámos. Era cedo e o sol devia estar
pela altura dos joelhos. Os cães a saltarem felizes à nossa volta. Lavámos a
cara e os dentes com água do jerrican, comemos fruta e queijo que tinha sobrado
da noite. Recolhemos o material e os cães, limpámos de resíduos e memórias o
lugar e seguimos viagem.
Café na bomba de gasolina e fomos ao que viemos. Procurar os
barros.
Todas as olarias concentradas numa aldeia próxima, dispersas
nas ruas desertas e montadas nas casas dos oleiros. A aldeia vive do barro e
dos oleiros. Alguns eram construtores de telhas e tijolos e em meninos
aprenderam a fazer copos, pratos e jarras. Hoje todos são artesãos.
E todos continuam à espera do milagre do alqueva. Esperam
pelo milagre de molhar a massa do barro com aquela água de ouro da barragem.
Esperam o milagre do turismo que está para chegar. Pelo sim pelo não, dão
preços às peças como se o milagre da multiplicação dos euros já fosse um facto.
Depois, baixam para os valores de um país pobre onde vive gente pobre.
Conseguimos comprar uma tigela grande e bonita. A próxima
açorda já não se faz em alumínio.
Continuámos a conversar.
-
Não tem empregados?
-
Não. Faço tudo sozinho!!! Não quero cá ninguém
para me roubar.
– E a agricultura? Dá emprego?
– Às vezes contratam aí uns romenos ou
indianos...
– E portugueses?
– Portugueses não! Que exigem o salário
minino!!!
O pequeno-empresário-artesão-comerciante, na lógica de quem
emprega, sem pudores assume a miséria da fome que está disposto a pagar. Não
aceita pagar a fortuna do que é salario mínimo...
Tive vontade de lhe devolver a puta da tigela pelos cornos e
de lhe exigir os quinze paus de volta.
Felizmente a minha companheira percebeu antes de mim os meus
desejos instintivos e levou-nos dali para fora.
O sol riu-se da minha indignação na rua vazia.
De volta à estrada, sempre a rodear a grande barragem.
Olivais e mais olivais. Vazios. Oliveirinhas pequeninas,
sedentas de químicos a crescer raivosas na planície.
Na vila histórica parámos porque era preciso comer. Parámos
numa tasca com sala reservada para refeições. Quatro mesas, apenas uma ocupada
por uma família local. Com quem por ali parava.
Naturalmente conversámos. Voltaram-nos a falar do
desenvolvimento e do progresso do turismo da barragem.
Outra vez o sebastianismo do pantanal. A revolução da
agricultura que se anunciava era já uma realidade. Satisfeito por ter quem o
oiça, o empresário-autarca explica que é desta que vem o progresso.
Lembrei-o das promessas antigas. Diziam que iam produzir
legumes todo o ano, que iam produzir a melhor fruta da península, que iam ter
pastagens para bovinos da melhor qualidade...
Afinal de contas, fizeram o lago para regar o olival...
emprego ainda não chegou... chegou sub-emprego e semi-escravatura...
Mas há o turismo que está aí a chegar. Isto é já uma
realidade, mentiu-me convicto o homem que vende software de contabilidade e que
tambem é presidente da junta.
Contou-me que esperam turistas vestidos de cavaleiros que
com armaduras feitas de tecnologia de ponta, venham os dragões velhos da
pobreza e da interioridade. Dizem que os turistas vão chegar e que a coisa vai
mudar. Turistas a sério, estrangeiros e loiros, enlatados em camionetas de
luxo, porque não há comboio nem transportes de Lisboa para cá. Mas dizem que os
turistas vão ficar temporadas inteiras nas dezenas de hóteis das margens do
Grande Lago, que ainda não se construíram mas que já têm site na Internet e que
podem cobrar fortunas pelas noites estreladas do Alqueva.
E claro, há esse infinito recurso de elevado potencial
económico que é o golfe. A água é tanta que vai dar para regar milhares de
campos relvados onde vão florir bolinhas brancas de golfe. O desenvolvimento
vem atracar nos cais fluviais, com emprego para os mais novos e reformas
confortáveis para os mais velhos. Vamos vender todo este sol com sotaque
alentejano em embrulhos de cortiça produzida artesanalmente. Todas as tardes
vai haver workshops de nova-cozinha-alentejana.
A sério que sim! Assim nos falou o autarca que diz que não é
político.
Bêbado de tanto dinheiro na terra molhada, despedi-me sem
lhe dizer o que penso, para quê chamar estúpido ao homem, à frenta da mulher e
dos filhos??!?!?!
Voltei a descer à barragem. A água ali toda à espera.
A água veio e afinal tudo ficou na mesma.
Toda a agricultura que seria para criar emprego e
desenvolvimento, foi modernizada nas tecnologias de sucção de recusros e de
desfalque ao meio ambiente mas continua retrógada e medieval nas contratações
de mão-de-obra.
O turismo que faria prosperar a região continua à espera de
se cumprir e o que aparece são projetos megalómanos de lavagem de dinheiro ou
afirmações financiadas por maridos cansados a tiazinhas na pré-reforma que
descobriram o alentejo numa revista em Cascais.
O emprego que se esperava, esfumou-se nos vapores da crise e
quando aparece é sasonal, mal-pago e sem continuidade.
Os alentejanos continuam pobres e estão mais velhos e
solitários do que nunca.
As águas da barragem convidavam ao mergulho, desisti quando
molhei os pés... demasiado fria. Pensei em pescar, não era oportuno. Atirei
paus para os cães irem ao banho felizes.
Depois foi preciso voltar para cima. Trouxemos a tigela de
barro, vinho, fotografias e memórias de um futuro que se falta cumprir.
Enquanto isso, com toda aquela água parada, os moradores das
margens que outrora eram montados, esperam passivos por melhores dias e
dedicam-se à pesca. Outros, mais velhos e sábios ensaiam suicídios levando
cadeiras antigas para o campo e pendurando cordas grossas em sobreiros
solitários.