Ao fim de vinte e quatro horas de
viagens sucessivas, cheguei. Entalado entre um belga flamengo e um suíço
alemão, passei as 14 horas do voo Frankfurt-Hong Kong a servir de recheio de
sandes entre os dois gigantes e a ver filmezitos da tanga. Tentei reler os
vagabundos da verdade do J. Kerouc, mas sempre que me conseguia concentrar
havia sempre alguém que chamava a hospedeira, coisa que disputava a minha
curiosa atenção.
Finalmente a máquina baixou e eu
lancei ferro nos mares da China. Hong Kong é imensa e organizadinha no pior
sentido da palavra. Admito que é um sítio impressionante. Mas faltou-me espaço.
Os passeios são pelo ar para que os carros andem nas ruas. Lojas de todas as
marcas vendem de tudo a quem possa comprar. Bancos imensos com pessoas
apressadas a entrar e a sair. Carros, autocarros, motas, motorizadas e
elétricos. Homens de fato, mulheres pintadas de fresco todas as manhãs. Alta
tecnologia a cada passo. Ingleses e chineses a fingir que são ingleses. Até os
canteiros onde crescem flores têm o símbolo da coroa britânica e não se planta
uma flor sem um decreto assinado pela rainha.
Que me desculpem os locais, mas
detestei Hong Kong. Não me demorei. Mal cheguei, procurei o porto para sair.
Para ir para Macau, naqueles anos
de mudança de milénio, era preciso apanhar o ferry que liga a antiga
colónia portuguesa a Hong Kong. Foi o que fiz. No barco, no meio de uma
esmagadora maioria de chineses, a milhares de quilómetros do Rossio, pude ler
indicações escritas em português. Senti como se tivessem lá escrito aquilo
apenas para eu ler...
Depois do ferry, Macau. Muita
gente nas ruas, casas de banho públicas razoavelmente limpas e ruas com nomes
portugueses. Toda a gente a falar chinês. Alguns, poucos, falam inglês. Quase
ninguém fala português.
E eu que ia à procura das
memórias do Camilo Pessanha.
Disseram-me que se come bem e que
é dos poucos sítios do Oriente onde se pode beber vinho tinto a um preço
razoável. Li histórias sobre casas de ópio. Segundo aprendi, os cabarets
de Macau ficaram famosos no início do século XX pela liberdade vivida sendo dos
primeiros locais do mundo com sexo ao vivo.
Depois do banho, da refeição
possível e do reconhecimento ao perímetro da pensão onde estava, caí num sono
profundo. Seriam umas onze e meia da manhã. Acordei às cinco da tarde. Tinha
menos de uma hora de sol.
Saí a correr para ir ver a gruta
onde contam que viveu o Camões. Cheguei ao jardim, estava a escurecer devagar,
o busto do Luís Vaz plantado pr’ali numa pérgula. À volta da cabeça do poeta
senhoras de 70 a fazerem tai chi. A inscrição numa placa de mármore em letras
douradas. Deixei as senhoras a praticar e fui jantar para o porto. Depois,
porque o meu fígado naqueles dias ainda trabalhava com a força do motor de um
rebocador, fui para os copos. Em Macau, naquela altura, pode dizer-se que a
noite era animadita.
Às cinco da manhã eu ainda sem
sono.
Às seis, o sol a nascer, as
portas dos bares a fecharem e as portas das mercearias a abrir.
Voltei a pé para a pensão a
praticar o cantonês que aprendi repetindo a frase: quero uma cerveja. Deixei a
janela aberta para acordar com o sol e acertar o meu relógio biológico com a
Ásia onde estava. O sol cumpriu o seu papel, a ressaca também contribuiu para
que a cama me cuspisse cedo. Seriam umas dez da manhã quando saí para a rua
porque, tal como aprendi na noite anterior, “a casa é feita para os gatos
capados e para os cães doentes”.
Na esquina da Rua de Pequim com a
Rua de Shangai, à sombra do Casino Lisboa, há a esplanada do Imperador. Uma rua
sem trânsito, mas com muita animação. Comi ovos estrelados, fruta, e bolachas
que levava na mochila. Vieram ter à minha mesa três senhoras chinesas a propor
companhia. As três lindas e de sorriso profissional e genuína simpatia que não
desapareceu nem mesmo quando se foram embora depois de eu lhes perguntar se não
me pagavam outro pequeno-almoço.
Depois de comer, decidi-me por ir
ao que vinha. Fui procurar pelas memórias do Camilo.
Pensei que fosse fácil. Mas
estava enganado.
Por onde quer que fosse, tudo
traduzido em português que é também língua oficial de Macau. Nas livrarias,
livros trilingues, em cantonês, mandarim e português. Desde a arquitetura à
culinária. Milhares de patacas investidos na reconstrução de monumentos. Até um
busto do João de Deus espetaram numa esquina. Nomes das ruas todos em
português. Mapas, guias, revistas escritas em português que meia dúzia lia.
Milhentas referências ao Luís
Vaz. Nenhuma referência ao Pessanha.
Fui à biblioteca portuguesa. Quis
ir aprender.
Sobre o Luís Vaz, que merece
todas as homenagens que se lhe façam, parece que nem sequer esteve por aqui...
Uns dizem que sim, outros dizem que não, mas não há certezas... Apesar disso,
em Macau temos o zarolho em todo o lado: o Parque Camões, as estátuas ao Camões
e quinhentas mil referências ao Camões.
Relativamente ao Camilo, o imenso
vazio. Do Pessanha, nada ou tudo o que que há é muito pouco. Naquele tempo, e
falo de há menos de vinte anos, nem uma casa museu, nem estátuas, nem
referências, nada. E hoje, em 2020, não me parece que seja diferente.
Procurei na livraria portuguesa,
falei no Camilo Pessanha e mostraram-me um livrito que foi publicado por favor
pelo Instituto da Cultura (correspondente ao Ministério do Governo Regional).
Explicou-me o livreiro que o livro foi publicado mais por carolice de um tipo
que vive em Macau e que conhece e aprecia a obra do Pessanha do que por opção
de política cultural portuguesa.
Li o que pude no livro que me
vendeu barato e continuei na busca da memória do Camilo, fui ao cemitério de
Macau.
Andei à procura da campa do
poeta. Com muito esforço, lá encontrei.
Está enterrado com a mulher e com
o filho, numa campa comum no meio do labirinto das outras tumbas. Deixei-lhe
três rosas brancas. Naquele tempo, o governo português e a diplomacia cultural,
coitadinhos, não tinham dinheiro para pôr flores na campa do homem. Nem sequer
havia orçamento para mandar limpar aquilo. Tenho a certeza que agora é
diferente! Eu, que ignorante me confesso, grunho e suburbano, a persistir no
Pessanha. A pensar que, se houve alguém que fez uma fusão de culturas entre a
China e Portugal e que marca bem o orientalismo lusitano, esse alguém foi o
Camilo Pessanha.
O gajo que nasceu em Portugal e
morreu na China (Macau é China). O intelectual que leva Coimbra onde estudou,
para a China e aprende cantonês e os modelos culturais chineses. O poeta que
estudou direito como todos os outros intelectuais da viragem do século XX e que
vai ser advogado em Macau. O tipo que colecionava porcelanas e pinturas
chinesas. Que escrevia inspirado na estética poética tradicional chinesa e que
inaugura o modernismo em português. Compôs poemas modernos sem os escrever,
memorizava os textos e dizia-os na tradição confucionista. Passou a sua curta
vida a fazer e a memorizar poemas, a trabalhar como advogado, a fumar ópio, a
passear os cães e a fazer filhos. Deixou uma marca do caraças na literatura do
século XX com o livro Clepsidra, que os amigos editaram e ainda hoje é objeto
de estudo e de teses. Quem melhor que o Camilo Pessanha para ser o símbolo da
lusitaniedade no oriente???
Daí o meu espanto sobre o vazio
de Pessanha em Macau.
Acontece, e isso aprendi eu sem
que me ensinassem, que o Dr. Pessanha fez inimigos por aqui na colónia de
Macau.
Em particular, cultivou
inimizades entre as elites locais. Os portugueses em Macau, que não gostaram de
ver o Dr. Pessanha a defender chineses contra os colonos portugueses... Ninguém
lhe perdoou essa ousadia de querer considerar os chineses como iguais. Nem essa
nem as outras que chocaram a sociedade colonial e conservadora do princípio do
século XX. Camilo Pessanha, vestia-se à chinês, vivia com uma chinesa, tinha
filhos que educava como chineses e sobretudo trazia a génese de ideias
republicanas que difundia no liceu onde dava aulas.
Os defensores dos bons costumes
não lhe perdoaram. Arranjaram maneira de o despedir do liceu e de acabar com a
sua carreira como advogado. O próprio Camilo, com o seu vício de se encharcar
de ópio, também facilitou a coisa. Vendeu a coleção de porcelanas para
alimentar os filhos e o vício. Morreu tuberculoso. O sogro, que nunca gostou
dele, criou-lhe os filhos. A viúva substituiu-o por um comerciante. Os outros
portugueses de Macau lamentaram cinicamente e aliviados disseram que nunca devia
ter vindo.
A todos interessa apagar a
memória dos passos do Camilo.
Passei mais uns dias em Macau em
companhia do seu espetro.
Comi e bebi bem em Macau, mais do
que o necessário.
Perdi-me várias vezes no
labirinto das ruas e gostei de me perder. Numa manhã de nevoeiro, deixei Macau
e entrei pela China de regresso à Europa. Antes de sair, vi escrito em letras
grandes numa solene placa de pedra que ocupava toda uma parede: A PÁTRIA HONRAE
QUE A PÁTRIA VOS CONTEMPLA.
E eu, que metade de mim é sempre
do contra e a outra metade nunca está a favor, agoniei-me com a hipocrisia
posta na pedra. Senti vergonha da pátria que apagou a memória do Pessanha.
Lembro-me de ter pensado naquele momento que, se tivesse dinheiro, tempo e sete
vidas como os gatos, gastaria uma dessas vidas para ali ficar a encher-me de
ópio num bordel esconso, quis ficar por ali, eternamente a planar e a compor
poemas sobre amores com olhos em bico. Só para desonrar a pátria que nos pariu
contemplados!
Sem comentários:
Enviar um comentário