quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

DE ONDE NUNCA SAÍ - O MILAGRE DO ALQUEVA, de Helder Menor















Diz-se muita coisa. Por isso fomos ver. Estávamos naquela altura do começo da primavera, com dias secos de sol ameno e noites limpas e geladas.
Dois sacos-cama, os cães e meia-dúzia de mantimentos na mala do carro. Numa manhã de sol seguimos rumo à planície esquecida. Do subúrbio ao profundo rural.
No Google víamos toda aquela água ali pronta a matar a sede de quem tem fome.
Água doce como mel em terra seca e amarga de velhos solitários.
Quando se começou a construir o Alqueva, políticos grandes e pequeninos anunciavam um novo mundo de prosperidade e fartura para um Alentejo velho e mirrado de gentes. São bons a anunciar futuros radiantes, os políticos. No início do milénio o dinheiro ia chegando, às vezes em jorro outras vezes a conta-gotas, sempre hipotecando os nossos bolsos coletivos. E a água foi subindo nas terras de sequeiro. Depois acabou-se o beiral a pingar dinheiro e veio a crise, mas o Alqueva já lá estava.
Nós chegámos antes do almoço. Na aldeia vazia, a mercearia era o epicentro da vida. Sotaques cerrados e rostos fechados que se foram abrindo.
Não, não viemos comprar terrenos, nem casas antigas para reconstruir.
Comprámos carvão, ovos, chouriço para assar, alhos, pão e fruta.
Falaram-nos dos hóteis que dizem que se vão construir. 
            – Onde?
            – Lá me baixo, na barragem.
            – Nós não procuramos hotel, viemos só ver a barragem.
Despedimo-nos e seguimos a pé para comprar vinho. Na taberna, sem rótulo, dentro de uma garrafa de litro e meio de água vazia. Tinto, naturalmente. Trouxemos também uns queijinhos duros e salgados.
Depois montámos na mula mecânica que nos transporta e descemos pelo estaradão de terra até à àgua. Escolhemos uma sombra uns metros acima da linha da água para deixar a carrinha. Acendi o lume e soltei os cães.
Tirámos fotografias à barragem que ali nasceu e ali ficou.
Olhámos à volta e o vazio absoluto respondeu-nos com silêncio.
Acendi um lume rasteiro entre pedras e assámos o chouriço. Comemos com pão, fruta e vinho. Depois, a sesta numa rede montada entre sobreiros.
Na tarde calma, caminhámos na borda d’água espiando os pássaros e ouvindo os sons esquivos do grande lago. Pegadas de perdiz, raposa e eventualmente texugo, ou arminho. Pelo caminho, apanhámos poejo, hortelã e umas laranjas ácidas com tamanho de tangerinas de uma larangeira meio selvagem e esquecida.
Cansados e felizes, voltámos para junto da carrinha, estava o sol a baixar. Vimos o pôr do sol sobre as águas mansas. Reacendemos a fogueira porque era preciso fazer o jantar e o frio da noite chegou sem pedir licença.
As estrelas acenderam-se no céu. Dentro de um púcaro grande, sobre as chamas, deitei àgua para ferver. Num tacho velho de muitas andanças, o pão que sobrou do almoço partido aos bocadinhos, dois dentes de alhos migados, azeite, os poejos e uma folha de hortelã. A água a ferver no tacho sobre as chamas da fogueira chamou os ovos para escalfar. A açorda é sempre comida de conforto, sobretudo quando o tempo arrefece e a noite cai sem lua.
Toda aquela água à nossa frente, parada, a refletir o brilho das estrelas alentejanas. Os cães deitados à nossa volta davam uma sensação doméstica à cena. Ali ficámos, a beberricar do tinto naquela conversa sem fim de quem se escolheu, entre outras coisas, para conversar até ao fim da vida. Perdemos a noção das horas e não sabemos quando fomos dormir.
Mas sabemos quando acordámos. Era cedo e o sol devia estar pela altura dos joelhos. Os cães a saltarem felizes à nossa volta. Lavámos a cara e os dentes com água do jerrican, comemos fruta e queijo que tinha sobrado da noite. Recolhemos o material e os cães, limpámos de resíduos e memórias o lugar e seguimos viagem.
Café na bomba de gasolina e fomos ao que viemos. Procurar os barros.
Todas as olarias concentradas numa aldeia próxima, dispersas nas ruas desertas e montadas nas casas dos oleiros. A aldeia vive do barro e dos oleiros. Alguns eram construtores de telhas e tijolos e em meninos aprenderam a fazer copos, pratos e jarras. Hoje todos são artesãos. 
E todos continuam à espera do milagre do alqueva. Esperam pelo milagre de molhar a massa do barro com aquela água de ouro da barragem. Esperam o milagre do turismo que está para chegar. Pelo sim pelo não, dão preços às peças como se o milagre da multiplicação dos euros já fosse um facto. Depois, baixam para os valores de um país pobre onde vive gente pobre. 
Conseguimos comprar uma tigela grande e bonita. A próxima açorda já não se faz em alumínio. 
Continuámos a conversar.
-        Não tem empregados?
-        Não. Faço tudo sozinho!!! Não quero cá ninguém para me roubar.
          E a agricultura? Dá emprego?
          Às vezes contratam aí uns romenos ou indianos...
          E portugueses?
          Portugueses não! Que exigem o salário minino!!!
O pequeno-empresário-artesão-comerciante, na lógica de quem emprega, sem pudores assume a miséria da fome que está disposto a pagar. Não aceita pagar a fortuna do que é salario mínimo...
Tive vontade de lhe devolver a puta da tigela pelos cornos e de lhe exigir os quinze paus de volta.
Felizmente a minha companheira percebeu antes de mim os meus desejos instintivos e levou-nos dali para fora.
O sol riu-se da minha indignação na rua vazia.
De volta à estrada, sempre a rodear a grande barragem.
Olivais e mais olivais. Vazios. Oliveirinhas pequeninas, sedentas de químicos a crescer raivosas na planície.
Na vila histórica parámos porque era preciso comer. Parámos numa tasca com sala reservada para refeições. Quatro mesas, apenas uma ocupada por uma família local. Com quem por ali parava.
Naturalmente conversámos. Voltaram-nos a falar do desenvolvimento e do progresso do turismo da barragem.
Outra vez o sebastianismo do pantanal. A revolução da agricultura que se anunciava era já uma realidade. Satisfeito por ter quem o oiça, o empresário-autarca explica que é desta que vem o progresso.
Lembrei-o das promessas antigas. Diziam que iam produzir legumes todo o ano, que iam produzir a melhor fruta da península, que iam ter pastagens para bovinos da melhor qualidade...
Afinal de contas, fizeram o lago para regar o olival... emprego ainda não chegou... chegou sub-emprego e semi-escravatura...
Mas há o turismo que está aí a chegar. Isto é já uma realidade, mentiu-me convicto o homem que vende software de contabilidade e que tambem é presidente da junta.
Contou-me que esperam turistas vestidos de cavaleiros que com armaduras feitas de tecnologia de ponta, venham os dragões velhos da pobreza e da interioridade. Dizem que os turistas vão chegar e que a coisa vai mudar. Turistas a sério, estrangeiros e loiros, enlatados em camionetas de luxo, porque não há comboio nem transportes de Lisboa para cá. Mas dizem que os turistas vão ficar temporadas inteiras nas dezenas de hóteis das margens do Grande Lago, que ainda não se construíram mas que já têm site na Internet e que podem cobrar fortunas pelas noites estreladas do Alqueva. 
E claro, há esse infinito recurso de elevado potencial económico que é o golfe. A água é tanta que vai dar para regar milhares de campos relvados onde vão florir bolinhas brancas de golfe. O desenvolvimento vem atracar nos cais fluviais, com emprego para os mais novos e reformas confortáveis para os mais velhos. Vamos vender todo este sol com sotaque alentejano em embrulhos de cortiça produzida artesanalmente. Todas as tardes vai haver workshops de nova-cozinha-alentejana.
A sério que sim! Assim nos falou o autarca que diz que não é político.
Bêbado de tanto dinheiro na terra molhada, despedi-me sem lhe dizer o que penso, para quê chamar estúpido ao homem, à frenta da mulher e dos filhos??!?!?! 
Voltei a descer à barragem. A água ali toda à espera.
A água veio e afinal tudo ficou na mesma.
Toda a agricultura que seria para criar emprego e desenvolvimento, foi modernizada nas tecnologias de sucção de recusros e de desfalque ao meio ambiente mas continua retrógada e medieval nas contratações de mão-de-obra.
O turismo que faria prosperar a região continua à espera de se cumprir e o que aparece são projetos megalómanos de lavagem de dinheiro ou afirmações financiadas por maridos cansados a tiazinhas na pré-reforma que descobriram o alentejo numa revista em Cascais.
O emprego que se esperava, esfumou-se nos vapores da crise e quando aparece é sasonal, mal-pago e sem continuidade.
Os alentejanos continuam pobres e estão mais velhos e solitários do que nunca.
As águas da barragem convidavam ao mergulho, desisti quando molhei os pés... demasiado fria. Pensei em pescar, não era oportuno. Atirei paus para os cães irem ao banho felizes.
Depois foi preciso voltar para cima. Trouxemos a tigela de barro, vinho, fotografias e memórias de um futuro que se falta cumprir.
Enquanto isso, com toda aquela água parada, os moradores das margens que outrora eram montados, esperam passivos por melhores dias e dedicam-se à pesca. Outros, mais velhos e sábios ensaiam suicídios levando cadeiras antigas para o campo e pendurando cordas grossas em sobreiros solitários.



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