Aqui há dias revi-a.
A Alhinhos, como era secretamente
conhecida em alguns círculos fechados.
Está uma senhora com quase
cinquenta anos, de bem com a vida. Já não é gótica, está casada com um senhor
que é engenheiro civil e trabalha nas finanças, numa pequena cidade de
província.
Contou-me uma amiga comum.
Longe vão os tempos das saias
pretas e dos cultos satânicos. Provavelmente enterradas nos cemitérios da
memória as noites loucas em que nos conhecemos. Limitámo-nos a sorrir um para o
outro e a um distante “tudo bem”.
Mas eu lembro-me. Aconteceu nos
anos noventa. Foi numa noite de semana, num dos Novembros mais chuvosos de que
tenho memória. Estava com um grande e inseparável amigo no bar do costume.
Éramos quase irmãos de sangue e de armas. Não sei porque bebíamos naquela
noite, se para festejar glórias efémeras, se para afogar mágoas passageiras.
Teríamos ambos entre os vinte e cinco e os trinta anos, éramos ambos
divorciados, adúlteros e com tendência para beber demais e viver de mais.
Ambos encostados ao balcão do bar
discutíamos sobre qualquer coisa. O que quer que fosse que pudéssemos disputar,
porque a amizade entre nós os dois era feita de discordâncias e disputas.
Atrás do balcão, estava ela, a
vender gelo com whisky. Ia dando conversa.
O bar ia ficando vazio e ela lá
de cima do pedestal dos saltos altos, deu a entender que estaria disposta a
adotar um de nós para uma noite de amor no banco de trás do carro. Falo-vos de
um tempo remoto em que se podia fumar em todos os bares. O ar cheirava a
tabaco, a bebidas, a chuva e a um outro cheiro conhecido que naquele momento,
não consegui identificar. Ela era nova na terra e procurava um cicerone que lhe
mostrasse os encantos regionais.
Não era feia. Ainda hoje não é feia. Com uma atitude que balançava entre a
barbie e a intelectual tinha encanto. Macrobiótica, esotérica e bailarina. De
estética e gostos góticos. Tinha uns olhos escuros pintados de preto que
brilhavam com alguma graça. Chamava-se a si mesma Bruxinha ou Vampira. Branca,
talvez demasiado branca, magra com as pernas compridas e as maminhas pequenas
que cabiam em mãos pequenas. Tinha o cabelo de cor extravagante que lhe dava
alguma graça apesar do visual monocromático no preto.
O processo de engate estava já
adiantado quando ela se decidiu... Naquela noite, segurou-me nas mãos por cima
do balcão, ia falando de íncubos enquanto me massajava a linha da vida com o
indicador direito. O meu amigo percebeu, despediu-se e saiu.
O bar finalmente fechou, saímos
os dois para a rua debaixo da chuva-molha-parvos e entrámos no carro dela. Era
uma carrinha Renault 4 L amarela que cheirava a borracha e cigarros misturados
com perfume. Acima de todos estes odores cheirava a alho. Já no bar me tinha
cheirado a alho, mas não tinha identificado o aroma... agora não tinha como
ignorar.
Sentado no lugar do morto, reparei que em cima do tabeliê havia uma cabeça de
alhos. Meio a brincar perguntei-lhe:
– Então, tens aqui estes alhinhos
é para aromatizar o carro?
– Não, respondeu, é para proteção
esotérica. Evita vibrações pesadas, afasta espetros de baixa energia e mantém
os vampiros espirituais à distância. Além disso, é muito bom para a saúde. Tomo
sempre duas cabeças de alho antes das refeições - É um antioxidante natural
fortíssimo e excelente tónico em geral. Nunca me constipo e sou super
saudável!!!!
Vendo onde estava metido, fiz o
que fazem os grandes exércitos quando avançam sobre terreno pantanoso:
recuei...
Abri a boca como se tivesse muito
sono e disse:
– Podes levar-me a casa? São
quase três da manhã! Tou super cansado e amanhã tenho de estar muito cedo em
Lisboa.
Ela ficou visivelmente desiludida,
mas manteve o sorriso. A conversa foi agradável e durou cinco minutos até à
porta da casa onde me deixou. Beijinhos na cara, amigos como dantes.
Passado uns dois ou três dias, voltei a encontrar o meu amigo no mesmo bar de
sempre. Sentámo-nos os dois ao balcão a beber e a falar. A empregada, meio fria
comigo e desiludida com a noite anterior, não teve indecisões e escolheu
imediatamente o meu amigo. Eu ainda o avisei:
-
Vê lá se não te cheira a alho...
Satisfeito com a vida e
celebrando a amizade, respondeu-me gingão e gabarolas:
– A mim cheira-me é ao desejo que
corre nas entranhas daquela senhora, desejo e curiosidade de conhecer um
verdadeiro homem, e eu estou disposto a satisfazer-lhe ambos, o desejo e a
curiosidade!!!
Rimos-nos juntos e, nessa noite,
fui eu que me despedi e desapareci.
Passaram dois ou três dias sem que nos encontrássemos.
Quando nos revimos, o meu amigo
estava com cara de caso.
– Que cara é essa, o que
aconteceu? Então a Alhinhos? Tá boa?
– Aconteceu que a tua amiga Alhinhos é
um caso clínico. Primeiro é o cheiro a alho que tresanda... depois quis ir
parar o carro atrás do muro do cemitério. Ok, fiz-lhe a vontade e fui... A
seguir dizia que a lua cheia a deixava tão excitada que sentia que precisava de
morder... Depois, depois... olha... Depois daquela noite acordei com as partes
sensíveis que parecia que estavam em brasa... a arder como se tivesse uma
queimadura... a sério!!! Tive que ir ao médico e tudo... Nunca me tinha
acontecido tal coisa!!! Nunca mais!!! Só conheces psicopatas pá!!!
O caso foi sério e não é para rir!!!
E isto são factos. O rapaz foi ao
dermatologista, que lhe receitou uma pomadinha para passar pelas partes.
Inclusivamente teve de fazer análises. Ao princípio, o médico achou que era
alergia a uma determinada marca de preservativos, mas depois de lhe fazerem os
testes todos, percebeu-se que não era dos preservativos... aquilo era alergia
ao alho....
Precisamente.
A rapariga tinha tal concentração
de alho na saliva que por trocaram uns beijinhos mais íntimos o meu pobre amigo
ficou com a masculinidade inflamada.
Não consigo deixar de pensar que
para poder trabalhar nas finanças, num serviço de vampirismo de estado, um dos
requisitos, foi ter deixado definitivamente o consumo desenfreado de alho...
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