Vendas Novas é terra de militares, ferroviários e moças
pobres a fazer pela vida. Assim conta a tradição das estradas do Alentejo. O
caso que vos venho contar, aconteceu em Vendas Novas, mas quase que não mete
fardas da tropa, nem fardas dos caminhos de ferro, nem saias curtas, nem
ambiente de bordel.
É uma história triste e verdadeira entre o milagre e o nada.
Há cerca de 50 anos nasceu na Beira, Moçambique, uma bebé
pequena e saudável, filha de um sargento de artilharia e da senhora sua esposa
dona Efigénia, mulher beirã, dura e devota. Segunda filha, irmã mais nova de um
rapazinho de três anos. À menina chamaram Sara, ao irmão tinham chamado Sérgio.
Acabada a comissão do sargento, em 1972 regressou com a
familia para Vendas Novas, onde ficou colocado. O militar, com as economias da
segunda comissão em Moçambique, comprou um terreno na estrada que segue para
Bombel. Fez uma casa de rés-do-chão e primeiro andar. Uma vivenda simples e
modesta para uma vida simples.
Passou o 25 de Abril e os ventos de mudança da Revolução não
afetaram a vida do Sargento Ramos. As crianças foram crescendo e o sargento,
sem grandes sobressaltos foi-se mantendo na Escola Prática e marcando o passo
da classe dos sargentos. Nos anos 80, com a epídemia da heroína, o rapazito Sérgio
foi infetado. Os braços do moço apareciam picados e o dinheiro de casa
desaparecia. O sargento Ramos tentou resolver as coisas como sabia: gritos e
tareias com o cinturão da farda. A dona Efigénia, fez à sua maneira, reforçou a
sua presença na igreja, fez promessas à Virgem e apoio ao marido. A Sarita,
tímida e assustada, acompanhava a mãe nos percursos religiosos. Vivia uma
existência entre o estudiosa e o êxtase místico, exacerbado pelas crises de
sonambolismo em que, a dormir se levantava e a mãe ia com ela ajoelhada a rezar
o terço à Nossa Senhora de Fátima. Teria treze anos e queria ser freira.
Por volta de 1988, o rapaz saíu de casa e veio morar para
Lisboa. O pai dizia que o filho para ele tinha morrido. A mãe, chorava e fazia
promessas. A irmã , entregava-se a Deus quando devia entregar-se aos amores da
adolescência. Desistiu de ser freira, para ficar em casa a apoiar os pais.
Dois anos depois de ter saído de casa, o rapaz apareceu
morto nuns arbustos da berma da Avenida de Ceuta. Telefonaram ao pai para ir
reconhecer o corpo ao Instituto de Medicina Legal, no campo de Santana. O
sargento foi sozinho para Lisboa e voltou com a morte do filho na mala do
carro. Fizeram o funeral do rapaz e o luto com o apoio da família, dos viznhos
e dos outros sargentos.
A Sara estudava para ser professora primária mas continuava
a viver a vocação de esposa de Cristo. Em casa, disse ao pai que foi Deus que
levou o mano.
O sargento, não durou muito mais... no inverno seguinte à
morte do filho, apareceu-lhe o cancro que o levou. Ficou de baixa, depois
passaram-no à reserva. O soldado morreu velho e mirrado no hospital de Setúbal.
À Sarita, acabado o curso, foi colocada como professora
primária numa escola perto de casa. Dedicava-se aos meninos e à catequese.
Nunca casou nem se lhe conheceram namorados.
A dona Efigénia, na sua fragilidade dos cinquenta quilos,
manteve-se rija e continuou a gerir a casa, a pensão de viúvez do marido e o
salário da filha, com a mão de ferro que herdou do sargento de artilharia. A
filha professora que tinha sido uma rapariguinha apagada, foi-se transformando
numa senhora apagada. Dos vinte saltou para os trinta. Dos trinta saltou para
os quarenta. Sem amores a não ser o amor a Deus, à Nossa Senhora de Fátima e à
Familia, este último amor condensado na pessoa da mãe que envelhecia seca.
Quando estava quase a fazer trinta, umas vizinhas e amigas
lá da igreja, tentaram arranjar um namoro à Sarita com um moço que era sobrinho
de alguém... mas o namoro não foi para a frente, porque a Sara não gostou dos
avanços do moço a pegar-lhe nas mãos e a propor levá-la no carro para o cinema
em Lisboa. Passaram os anos e a Sara foi ficando sozinha.
Há coisa de cinco, seis anos, uma família chinesa que tem um
restaurante e uma loja lá em Vendas Novas, alugou a casa ao lado da casa onde
viviam a Sarita e a dona Efigénia.
Os chineses e as suas chinesises culturais foram assunto de
conversa entre a mãe e a filha. Os dois quintais pegados e a falta de assunto,
faziam com que a vida dos chineses fosse a telenovela favorita das senhoras.
Os chineses arranjaram o anexo do quintal onde era a cozinha
com o lume de chão e fizeram desse espaço uma outra casa, com um quarto
pequenino, uma cozinha minúscula e uma microcasa de banho. Passados uns meses,
alugaram o anexo a uns moços do Bangladesh, que vieram trabalhar na
agricultura. Eram quatro rapazes à volta dos vinte anos que ali viviam.
A Sarita e a dona Efigénia sempre atentas às entradas e
saídas dos rapazes do Bangladesh, aos seus hábitos de higiene, à frequência dos
banhos, à lavagem das roupas, loiças e horários das refeições.
A mãe, na casa dos setenta, rija. A filha, nos quarenta e
picos cheia de doenças que os médicos não conseguiam curar. Eram formigueiros
nas pernas, dores nas costas, ventre inchado, tonturas... A médica fez-lhe os
exames todos. Inconclusivos. Mandou-a ir a um psiquiatra.
Médico dos nervos, dizia ela às beatas com quem se
relacionava e às duas colegas na escola.
O psiquiatra disse-lhe que ela tinha uma depressão e
receitou-lhe comprimidos que a faziam dormir.
A Sara tomava os comprimidos religiosamente depois do terço
e deitava-se para dormir sem sonos na sua cama de solteira, naquele quarto de
freira decorado com imagens de cristo e dos santinhos. De manhã, levantava-se,
rezava e ia trabalhar carregando a cruz da sua doença e dos sofrimentos do
mundo. A dona Efigénia, queixava-se da vida e mantinha as portas e as janelas
fechadas para não entrar nem o frio nem o calor. A casa, foi-se transformando
num convento, cuja única janela que se abria era a do quintal e que dava
diretamente para a novela dos bengalis a viver ao lado.
Entre o bem e o mal, às vezes vai a distância de um suspiro.
E o bem ou o mal entrou precisamente por essa janela que era a única que se
abria. Naquele inverno rigoroso, nas noites de sono químico da Sarita, as
crises de sonambulismo voltaram e em força. Mas desta vez, não ia rezar o
terço, nem a mãe acordava para vê-la.
Adormecida e de olhos fechados, na sua camisa de dormir de
flanela e descalça, saía do quarto silenciosa, de luzes apagadas e descia pela
escada do quintal até ao muro baixo que saltava com deselvoltura. Depois batia
devagar na porta do anexo onde viviam os bengalis e entrava. Entrava para amar
o amor que nunca tinha conhecido mas que o seu corpo sabia fazer sem que lhe
tivessem ensinado.
Na primeira vez que aconteceu, o rapaz veio abrir a porta e
não percebeu o que é que a vizinha do lado queria. Abriu a porta e deixou-a
entrar. Ela passou por ele sem abrir os olhos e foi direta ao quartinho onde
estavam os dois beliches. Depois despiu a camisa de dormir e as cuecas de gola
alta com que dormia sempre e meteu-se na cama do outro mocinho que no espanto
dos seus vinte e dois anos nunca lhe tinha acontecido tal coisa.
O outro rapaz, no mesmo beliche em cima, saltou da cama
espantado. Ainda tentou falar, mas o que estava na cama de baixo e debaixo da
Sarita, mandou-o calar. Ele calou-se. Quando o rapaz acabou, a Sara quis
continuar. Pegou na mão do espantado que lhe tinha aberto a porta e que estava
de olhos arregalados e abraçou-o antes de o levar para a cama. Acabado o
segundo, a dormir mas de sentidos despertos, o seu corpo pediu mais. Foi ao
terceiro. E depois o quarto. Sempre a dormir, sempre em silêncio, sempre de
olhos fechados. A cerimónia do amor durou duas horas, quando o seu corpo
decidiu, vestiu as cuecas, a camisa de dormir e saiu sem dizer palavra.
Os quatro jovens, não dormiram mais naquela noite. Quando os
telemóveis tocaram para a alvorada, já tinham decidido não contar a ninguém o
que tinha acontecido. No dia seguinte foram trabalhar com um sorriso nos lábios
e pronto. É a Europa, diziam entre si, aqui as coisas são diferentes... as
mulheres são diferentes.
Na noite seguinte a Sara não voltou ao anexo dos rapazes.
Mas nessa semana aconteceram mais duas vezes as crises de
sonambulismo que passavam pela cama dos bengalis.
A coisa foi assim durante meses. Três ou quatro vezes por
semana, a vizinha adormecida, descia as escadas e amava com um, dois, três ou
os quatro. Dependia da vontade da mulher e da disponibilidade dos moços.
Depois, voltava a pôr a camisa de dormir e seguia calada e silenciosa para a
sua casa escura e para a sua cama de convento.
Sem que soubesse explicar porquê, a Sarita começou a
sentir-se melhor da sua saúde. Passaram as tremuras nas pernas, as dores nas
costas e as tonturas. Também se sentia menos triste e com mais energia.
Pensou que fosse ajuda da nossa senhora a quem rezava todos
os dias. Pensou em milagre, de facto era um milagre noturno que às vezes
acontecia mas que só os bengalis sabiam. Os chineses que tinham alugado a casa
ao lado, transformaram-na num armazém onde não morava ninguém, por isso o
segredo do quintal era apenas testemunhado pelas duas laranjeiras e pelo
limoeiro por cima do poço.
A coisa durou assim uns meses. Do inverno passou-se à
primavera e da primavera entrou-se no verão.
A menstruação deixou de aparecer à Sara. Ela estranhou, era
mulher regular... depois pensou, que seria a menopausa... tinha quarenta e
cinco anos, se calhar ainda era cedo para a menopausa... mas não podia ser
outra coisa, por isso não se preocupou.
Os rapazes do Bangladesh, perceberam antes pelas mudanças no
corpo da viznha. Quando ela aparecia à noite, tinham o cuidado de não
pressionar o ventre.
A barriga começou a inchar... e as mamas que não eram
grandes, começaram a crescer-lhe.
Quando decidiu ir ao médico estava grávida de sete meses.
Impossível! disse ao médico.
- Sou solteira e nunca conheci
homem.
O médico, mostrou-lhe a ecografia com o bebé a branco a
nadar num aquário preto dentro da barriga dela.
Sem saber o que fazer ou dizer, levou os papéis do médico e
a ecografia e foi direta ao padre
Silvino. O Padre que era padrinho dela e
tinha sido capelão no quartel, muito amigo do pai e amigo da família.
Contou-lhe tudo. Tudo o que sabia. Tudo menos das crises de
sonambulismo das quais nunca teve conhecimento.
O Padre, abriu muito os olhos miúpes e perguntou-lhe:
- Sarita, minha filha, queres que
te oiça em confissão?
- Mas padrinho, eu nunca tive com
homem nenhum! Juro por tudo o que é mais
sagrado!
- Está bem minha filha... mas
para estares grávida....
A Sara, chorou por incompreendida.
Voltou para casa e não falou com a mãe naquele dia. Queria
esperar por uma altura melhor.
As crises de sonambulismo não voltaram.
Ficou em casa calada com a barriga a crescer. A dona
Efigénia percebeu antes da filha ter ido ao médico. De raiva, de dor e de
vergonha, deixou de falar à filha.
Uma noite de outono, chegaram as dores à Sara. Fez força,
mordeu uma toalha turca sem gritar e pariu sozinha na cama um bebé que nasceu
morto. Cortou o cordão com uma tesoura de costura e depois, também ela morreu
esvaída em sangue. Os bombeiros de Vendas Novas vieram buscar os corpos na
manhã seguinte, já próximo do meio-dia, quando a dona Efgénia abriu a porta do
quarto da filha para arejar.
Está enterrada no cemitério de Vendas Novas. A mãe fez-lhe
um funeral simples, com a urna fechada e o bebé foi com ela no mesmo caixão.
Foi assunto falado em Vendas Novas.
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