O meu avô materno seguiu a segunda guerra mundial em direto e viveu-a como um jogo de futebol entre os bons e os maus.
Foi ao meu avô quem ouvi pela primeira vez falar no Montecassino. Contou-me que foi a Stalingrado italiana. Os alemães tinham a linha defensiva de Roma instalada sobre montanhas. No final de 1942, as tropas aliadas vinham a subir a bota italiana, desde o sul empurrando os nazis para norte e deixando os fascistas do Mossulini entregues à justiça do povo. Mas chegados a Cassino os aliados tiveram de parar. O inverno de 42/43 foi dos mais duros que a Europa conheceu e registou. Os alemães estavam bem acantonados numa abadia mediaval no cimo de um monte perto de Cassino e controlavam a única passagem disponível para norte. Os aliados tentaram forçar. Polacos, franceses do De Gaulle, os fuzileiros americanos e os escoceses, todos eles, à vez e juntos, tentaram. Todos eles levaram porrada dos nazis – assim me contou o meu avô. Os americanos lançaram um bombardeamento daqueles de arrasar tudo... Os alemães meteram-se nas caves da abadia a mamar lambrusco e a comer presunto e, quando o bombardeamento acabou, vieram para cima e fortificaram os escombros. Eram paraquedistas nazis e não deixavam chegar ninguém lá acima. O janeiro de 43 estava a acabar e o fevereiro ia avançado sem que os aliados chegassem a Roma. Do leste, no inicio daquele fevereiro gelado, chegavam notícias que os soviéticos já tinham corrido com os nazis em Volgrado e que a cidade já se chamava Stalingrado.
E os aliados a levaram dos alemães ali no Montecassino a menos de 150 quilómetros de Roma.
Foi nesse desespero que os ingleses, pressionados pelos americanos, mandaram a companhia dos indianos. Na realidade não foram os indianos, foram os Gurkas. Carne para canhão, literalmente.
Mas o milagre aconteceu, aqueles soldados franzinos e mal alimentados com os restos dos restos, pois aos indianos chegavam às sobras daqulilo que os escocesses não queriam comer e os escoceses só comiam o que ingleses deixavam na borda do prato... Foram aqueles soldados famintos e mal agasalhados que subiram o Montecassino armados de facas e tomaram a abadia aos paraquedistas alemães. Depois dos Gurkas abrirem os portões do Montecassino, os aliados puderam passar e daí tomar Roma foi canja. Enforcar o Mussolini no talho foi a sobremesa.
Assim me contou o meu avô e por isso sei que é verdade. Eu tinha uns oito ou nove anos e fiquei imediatamente fã dos Gurkas. Mais tarde aprendi que os Gurkas não eram indianos, mas sim nepaleses. E que a arma que usavam, não era uma simples faca, mas sim um kukri.
Aconteceu-me que uns vinte anos depois do meu avô me ter contado sobre a batalha do Montecassino, tive oportunidade de ir ao Nepal.
Estávamos na mudança do milénio e o Nepal era um país entalado entre a pobreza absoluta e a guerrilha na montanha e uma monarquia quase feudal nas cidades. O teto do mundo, assim anunciava o turismo. Uma terra pobre e linda com um povo de gente resistente, simpática e trabalhadora.
Andei por Katmandu uns dias, sempre com a ideia de arranjar uma daquelas facas iguais aquelas cortaram aos bocados os nazis no Montecassino. Falei com pessoas. Armeiros, militares velhos e malta das arte-marciais. Todos me diziam que já não se faziam kukris. Então, um ex-militar e antigo jogador de futebol em Espanha, disse-me que, se queria um kukri bem feito tinha de ir ao centro do país, a uma aldeia perto de Mirkot chamada Sanabesi. Disse-me que aí ainda se faziam boas facas.
Pareceu-me uma ideia razoável e um bom pretexto para seguir viagem. Numa manhã fria e cinzenta de nevoeiro e poluição saí do vale de Katmandu num autocarro regional e em cinco horas fiz os cento e trinta quilómetros que me distanciavam de Mirkot.
Mirkot era uma vila perdida na montanha com uma rua principal de duzentos metros em terra batida, dois templos indus, duas ou três mercearias, uma escola e meia dúzia de casas.
Cheguei com fome de almoçar. Mas ainda com mais vontade de ir ver as facas. Procurei transporte para Sanabesi, o único taxista do lugar já tinha saído. Eram uns doze quilómetros por estrada e sete pelo atalho subindo e descendo a montanha. Considerei, mas o peso da mochila e o bom-senso prevaleceram.
Não havia propriamente um sítio para comer.... no lugar onde parava a camioneta serviam chá com leite, uma espécie de sopa de massa, queijo de búfala e aqueles pães redondos, fininhos e grandes. Comi o que havia.
A ideia era ir a Sanabesi, comprar a faca e voltar no próprio dia.
O autocarro que me trouxe voltou pelo mesmo caminho e só então percebi que não voltaria a Katmandu no próprio dia, porque o único transporte que havia era aquele que se tinha afastado entre fumo e pó.
O homem do táxi chegou uma hora depois. Combinámos o preço e fomos. A paisagem de tirar o fôlego com os Himalaias a mostrarem a ínfima dimensão humana que temos. A estrada foi herança dos ingleses. Não era mantida há mais de cinquenta anos e todos os invernos as avalanches de neve, lama e pedras faziam estragos. O carro indiano do taxista seguia a alta velocidade entre calhaus e precipícios.
Meia hora depois chegámos inteiros à aldeia de Sanabesi. Três casas, cinco cães, oito galinhas e umas quinze cabras. As pessoas ao ouvirem os cães a ladrar e o carro a chegar saíram para virem ver. Logo à entrada da aldeia estava a oficina do ferreiro de que me falaram em Katmandu. O homem, velhinho e seco veio receber-me descalço e em tronco nu debaixo de um avental de couro. No canto, debaixo de uma chaminé, a forja. Cheirava a fumo, a metal, a madeira e a couro. Na rua não estava frio porque havia sol. O ferreiro não falava inglês.
Por sinais expliquei-lhe ao que vinha. Apontei para as várias lâminas de kukris em processo de fabricação. Disse que queria um kukri para mim. Ele falou e eu não percebi. Mandou-me esperar e uma velhinha trouxe chá quente com leite e açucar onde boiava uma colher de manteiga que derreteu.
Decidi mandar o táxi de volta. Havia um telefone em Sanabesi pelo qual combinei ligar-lhe quando precisasse voltar.
Fiquei sentado nos bancos baixos da oficina do ferreiro enquanto o táxi se afastava ruidosamente. Só eu e o velhinho. Bebemos o chá em silêncio olhando um para o outro. Sem conversa limitámo-nos à comunicação pelo sorriso. Meia hora depois chegou a neta, teria uns doze anos e falava inglês. A menina traduziu:
- O meu avô diz que se quer um kukri tem de lhe tirar as medidas ao braço e pesá-lo, para poder fazer a arma para si.
Perguntei quanto custava.
Custava uns cinco contos... uma fortuna para a época e para o sítio... com cinco contos em rúpias nepalesas eu podia ficar uma noite alojado no melhor hotel do Nepal. Uma refeição num bom restaurante em Katmandu custava uns duzentos escudos...
- Quanto tempo demora a fazer o kukri?
O velho falou e a neta traduziu. Normalmente demora uma semana, mas se tiver pressa o meu avô consegue fazer em cinco dias...
Tentei regatear o preço. Não baixou o valor da faca, mas incluiu o alojamento e as refeições enquanto lá estivesse.
Quis pagar-lhe metade do valor acordado. Disse que não era preciso. Que levasse a mochila para cima e depois que descesse para começarmos a trabalhar na faca.
Só aí percebi que era para ficar por ali, naquele fim do mundo nos próximos dias. Iludido pelas distâncias nos mapas, achava que podia sair de Katmandu, ir a Sanabesi comprar um kukri e voltar no próprio dia.
O quarto que me deram era uma divisão apertada no sótão por cima da oficina. Tinha uma janela pequenina que dava para a montanha imensa em frente, uma esteira no chão com um colchão fininho de palha, um prego na parede e uma tomada elétrica. Havia uma casa de banho no pátio com uma latrina daquelas de fazer de cócaras e do lado de fora uma torneira. Se quisesse tomar banho, bastava acender uma fogueira no quintal debaixo de um alguidar grande de cobre, encher o alguidar de água, deixar aquecer a água até à temperatura que eu quisesse e quando a água estivesse quente com uma pá de ferro tirar as brasas debaixo do alguidar e usar uma caneca para ir despejando a água por cima de mim. Tudo muito simples mas impecavelmente limpo.
Quando desci para a oficina, o velho mediu-me os braços e pesou-me (foi há mais de vinte quilos atrás). Depois com giz no chão desenhou a lâmina e o cabo do kukri do tamanho exato que viria a ter. O velho trabalhava e falava, eu via tudo sem perceber uma palavra. A neta já não estava presente. Por gestos pediu-me para ir com ele. Fomos para uma arrecadação no pátio por trás da oficina. Empilhados do chão ao teto centanas de bocados de metal mais ou menos ferrugentos. De uma prateleira de tubos de andaime, aí a uns dois metros do chão, pediu-me para tirar uma peça. Tinha uns três palmos de comprimento, menos de um palmo de largura e pesava comó caraças. O velho falava. Eu sem entender.
Voltei carregando a placa de metal até à oficina onde tinha a forja. No chão preto com o giz branco desenhou um círculo com símbolo da paz invertido. Continuei sem perceber. O velho repetia a mesma palavra medês medês medês! Esforçado e paciente com a minha ignorância, o ferreiro desenhou uma camioneta de carga. Com grande detalhe desenhou as rodas e por trás das rodas os amortecedores. Por gestos explicou que a placa era de uma lâmina de amortecedor de camioneta. E repetia medês mêdes. Eu, burro, sem perceber. Até que o velhinho fez o símbolo da paz invertido sobre o capô da camioneta que tinha desenhado. Fez-se luz: Mercedes!!! Era uma camioneta mercedes. Aquele bocado de metal era de uma lâmina de um amortecedor de uma camioneta mercedes!!! Segundo o velho, aquele aço dos amortecedores da mercedes é dos melhores aços para fazer lâminas de facas. Seja mercedes, pois. Fabrico alemão!!!
O sol pôs-se cedo por trás da montanha.
Às seis da tarde jantei na cozinha uma sopa de lentilhas, carne de cabra e pão. Ás sete saí para espanto dos donos da casa para fumar e dar uma volta. Nem cinco minutos depois estava de volta. O frio e o vazio absoluto empurraram-me para dentro. As três luzes amarelas da aldeia acabavam a escassos metros e do lado de lá do círculo de luz desenhado no chão à volta do candeeiro o negro infinito da noite.
Quando voltei, estava a neta do meu anfitrião mais o resto da família à minha espera.
Não devia sair à noite. É muito perigoso. Andam à solta o leopardo e os espíritos de ontem. Por favor fica em casa. Se quiser beber o avô não se importa.
Não queria beber. Na realidade, não tinha o que beber. Por isso fiz a vontade a toda a gente: fui-me deitar e não voltei a sair à noite. Às oito e meia já eu dormia.
Fiz bem em dormir cedo porque no outro dia, ainda não tinha nascido o sol, já o velho estava à porta do meu quarto a gesticular para eu descer. Percebi depois que era para eu acender o lume. Desci. Na forja já estava preparado um monte de pauzinhos secos e papel de jornal por baixo. O ferreiro deu-me uma caixa de fósforos. Fiz-lhe a vontade. O velho gritou satisfeito, bateu palmas e abraçou-me como se eu tivesse vencido alguma prova desportiva. Depois levou-me para a cozinha onde um pequeno-almoço de bananas, pão, chá com leite e manteiga estava à nossa espera.
– Um guerreiro deve acender o lume que forja a sua arma!
Traduziu a miúda antes de ir para a escola.
Mal acabámos o pequeno-almoço voltou para a forja, quando quis entrar com ele, não deixou. Não podia passar.
Passou o resto da manhã na forja. Aí pelas nove e meia comecei a ouvi-lo martelar. Continuou a impedir-me a entrada. Saí para caminhar. Afastei-me da aldeia uns três quilómetros por caminhos de cabras a subir os Himalaias. Depois fartei-me de subir e do vazio de gente e voltei para trás.
À hora de almoço estava de regresso à casa do ferreiro. Voltou a proibir-me a entrada na oficina. Quando a menina chegou da escola explicou que o dono da faca não deve estar no sítio onde o metal é batido para que não amoleça o coração da lâmina.
Comi uma sopa de massa com legumes e carne de galinha. Estava boa.
À tarde voltei a sair para andar pelos matos à volta de Sanabesi. Cruzei-me com pastores e com búfalos. Não vi nenhum leopardo. Voltei antes do sol se pôr para comer. Galinha, arroz e umas folhas parecidas com espinafres cozidos. Às sete e meia estava na cama. Foram assim os dois dias seguintes.
Na manhã do quarto dia o velho chamou-me e mostrou-me a lâmina do kukri mais as duas pequenas facas que a acompanhavam. Faltava fazer os cabos e a baínha.
Não me deixou tocar na faca. Não lhe podia mexer enquanto não tivesse pronta.
A neta explicou que, se eu quisesse podia ficar na oficina enquanto o avô fazia os cabos e a baínha. Mas não podia tocar na faca.
Nessa dia vi o artesão trabalhar a madeia para os cabos e para a baínha. No dia seguinte, pela manhã ficou tudo pronto quando o velho cobriu e cozeu o couro à volta da baínha.
Num ato cerimonioso mostrou-me e deu-me a faca para a mão. A miúda estava presente e foi traduzindo a ladaínha do avô.
Que eu fizesse bom uso dela. Que a sorte me acopanhasse e que eu pudesse sempre usar o kukri como ferramenta de paz e que nunca fosse preciso ser usado como arma. Que os caminhos se abrissem para eu passar e se fechassem para os meus perseguidores. Que o longe se fizesse perto e que os meus passos encontrassem sempre o caminho de volta a casa.
Depois de pagar a faca, por magia apareceu o taxista que o velho deve ter chamado. Quis pôr o kukri dentro da mochila. O velho não quis. Disse que a devia usar à cintura. Obedeci-lhe. Despediu-se de mim com um abraço e disse-me que voltasse sempre que quisesse afiar a faca.
Foi de kukri à cintura na viagem de táxi de Sanabesi até Mirkot e depois de autocarro de Mirkot a Katmandu. Ao chegar a Katmandu, tirei a faca do cinto e pus dentro da mochila e não voltei a usá-la na rua. Voou comigo no avião, na bagagem de mão, tudo isto aconteceu antes do onze de setembro e eu nos aeroportos por onde passei declarei-a como peça de coleção. Chegámos a Lisboa intactos.
A lamina continua afiada a lembrar-me da vitoria sobre os nazis em Montecasino. A bainha cheira ainda à oficina do ferreiro de Sanabesi de onde nunca saí.