Calhou-nos atravessar Cuba
durante a noite. Ao contrário do caminho que o sol faz. Fomos de poente para
nascente. Do ocidente para o oriente. Direção Santiago.
Saímos ao cair do dia de uma
Havana quente e húmida. Choveu no caminho para a estação de camionetas e, na
tarde que tinha sido quente, aquela chuva soube-nos bem. Molhou-nos mas
soube-nos.
Comemos uma sandes no bar da
estação e sentámo-nos na camioneta que arrancou à hora marcada. Seriam oito da
noite. Demorámos a sair do centro da cidade. A rádio sintonizada numa estação
de notícias apitava a cada três minutos e ia repetindo os boletins noticiosos.
O ar condicionado no máximo do frio.
As luzes dos subúrbios foram
escasseando à medida que avançámos na estrada. Tentámos dormir, mas o gelo do
ar condicionado gelado e a nossa roupa, leve, escassa e húmida, davam-nos a
sensação de estarmos no ártico. Os casacos dentro das mochilas no porão. Cá em
cima apenas um saco de praia com cigarros, água e uma toalhita que nem sequer
era turca...Tapámo-nos com o pano da praia e encostámo-nos um ao outro. Não era
confortável mas foi romântico. Romântico e gelado. Na primeira paragem, umas
três horas depois de arrancarmos, já sabíamos de cor as notícias, saímos para a
noite húmida e quente da beira da estrada.
Os cavalheiros deviam atravessar
a estrada para irem à casa de banho que era
a mata do lado de lá da camioneta. Mesmo que não precisassem de ir...
todos tivemos de atravessar a estrada, para darmos privacidade às senhoras que
ficaram com a mata junto ao autocarro como casa de banho. Fumámos na estrada
vazia sentados no alcatrão morno.
Depois voltámos a entrar no
frigorífico que era o autocarro e seguimos gelados mais umas horas. O rádio
insistia nas notícias. Seriam umas quatro da manhã, parámos em Camaguey. Parámos
na estação das camionetas. Havia bar aberto, pessoas a descer e pessoas a
entrar. Voltámos a comer sandes e a beber chá quente e confesso que bebi um
trago de rum para neutralizar o frio de dentro do autocarro. Pontuais, quinze
minutos depois de chegarmos, seguimos viagem.
Chegámos a Santiago eram seis e
meia da manhã. A cidade a despertar.
Demasiado cedo para irmos bater à
porta da amiga do amigo que nos ia alojar... Todo o comércio ainda fechado.
Felizmente já não tínhamos frio. Na rua o calor e a humidade tropical
abraçavam-nos com carinho.
Fomos caminhando para o sítio que
eu recordava melhor e que me pareceu confortável para esperar: um jardinzinho
em frente do quartel-museu- escola Moncada. Era perto dali.
A minha companheira precisava de
tomar café.
Quem me conhece sabe que não bebo
café... por isso tenho dificuldade em entender aquelas urgências que dão às
vezes às pessoas que bebem café... as urgências do “preciso de um café”.
Pois foi uma urgência dessas que
deu à minha parceira de viagem.
Tinha sido uma noite longa, fria
e desconfortável... agora queria beber café.
Percebi que era preciso e urgente
encontrar um sítio que vendesse café.
Estávamos relativamente afastados
do centro e não havia nada aberto.
Entretanto, de uma casa próxima,
abriu-se uma porta e saíu um senhor vestido de fato de macaco a seguir para o
trabalho. Educado, disse-nos bom dia. Respondemos e aproveitei para lhe
perguntar onde é que podíamos tomar um café ali à volta uma vez que a minha
companheira queria tomar um café.
– Pois, aqui mesmo! Ainda tenho
cinco minutos e acabei agora de fazer café para mim. Não vos digo para entrarem
que a casa é pequena e estão todos a dormir... mas já vos trago o cafecito!
E assim foi.
Minutos depois, trouxe duas
chavenas de café. Eu expliquei que não bebia café... quis oferecer-me um trago
de rum... que educadamente recusei.
Não aceitou dinheiro.
Oferecemos-lhe cigarros dos
nossos que guardou para fumar depois.
Aguentámos por ali, nos bancos de
jardim mais uma hora, depois, já próximo das oito e meia da manhã, seguimos
para aquela que seria a nossa casa nos próximos dias.
Chegámos e instalámo-nos num
quarto disponível. Comemos o pequeno-almoço que merecíamos e tomámos o duche
necessário. Depois saímos para a rua.
Voltámos ao Moncada para ver as
crianças na escola onde antes tinha sido um quartel. Comovemo-nos com a memória
dos assassinados e torturados. Deambulámos pelas ruas mornas de Santiago.
No dia seguinte, saímos da cidade
e subimos ao Cobre. La Virgen del Caridad del Cobre, padroeira de Cuba, nada
mais nada menos que a própria Deusa Oxum, Ela mesma! A Oxum atravessou o
Atlântico à boleia dos navios negreiros e veio da Nigéria até Cuba, adoçar com
beleza e mel este chão quente e molhado.
Num caminho de cabras perto do
santuário, continuámos a subir a montanha. Andámos horas pelos bosques cerrados
e fomos aos locais secretos das práticas da Santeria. Vimos as oferendas aos
espíritos dos escravos supliciados e aos deuses africanos. Descansámos nas
pedras grandes junto a antigas minas de ouro escondidas na mata virgem.
Banhámo-nos nas lagoas sagradas.
Comemos churrasco de leitão e de
cabra em quintas remotas perdidas na serra.
Depois, voltámos a Santiago.
Andámos pelos ginásios das artes marciais e pelas livrarias.
Numa daquelas noites quentes,
enquanto folheava livros velhos e falava de política num alfarrabista, a minha
parceira descobriu um antepassado gigante das vulgares baratas. O bicho tinha o
tamanho de um pardal e asas que, não fossem o peso do papo cheio, a fariam levantar
voo. O grito soou na rua em frente ao alfarrabista para espanto do livreiro,
susto meu e surpresa da vizinhança.
Juntámo-nos uns quantos e
aniquilámos o animal.
Para celebrar a morte do monstro,
dançámos e bebemos nos clubes do bairro. Salsa e rum.
Na rua, com a vizinhança,
acendemos uma fogueira onde, em coletivo, cozinhámos uma refeição para
comemorar uma data qualquer, religiosa ou política. Não recordo nem interessa.
Recordo que a festa foi regada a rum e durou até de manhã.
Voltámos a sair da cidade para as
matas envolventes. No porto arranjámos um barco que nos levou para uma ilhota
com cocos, rum, iguanas, jacarés e a água do mar quente. Voltámos ao final da
tarde com um pescador que fez o favor de nos recolher. Na aldeia comemos uma
galinha de churrasco assada nas brasas de uma fogueira acesa para nos fazer o
jantar.
Depois voltámos para Santiago.
Quando chegou o dia de apanharmos
o autocarro de regresso, lá estávamos, ao cair da noite perto da
estação. Como habitual, estava
calor e húmido. Comemos umas sandes e, prevenidos, levámos um termo com chá.
Desta vez íamos agasalhados para uma noite polar: casacos, camisolas e as
mantas possíveis. Seriam umas oito da noite. O autocarro só saíria às nove e
meia.
Santiago completamente
anoitecido.
À minha companheira, apeteceu-lhe
café.
--- queres ir bater à porta do
gajo que nos deu o café quando chegámos? O homem foi tão simpatico da outra
vez? É aqui perto...
--- Não, tenho vergonha de ir à
casa das pessoas, mas o café era mesmo bom!!!
Pragmática, decidiu-se pelo bar
da estação que felizmente ainda estava aberto.
Pedimos um café e um traguito de
rum.
Bebemos os dois em copos
separados.
Saímos de Santiago embalados
pelos buracos da estrada e pelos boleros do rádio da camioneta, que em vez de dar
notícias, passava música dos anos cinquenta. O motorista avisou que
lamentavelmente o ar condicionado estava avariado e, por isso, se os
passageiros quisessem fresco teriam de viajar com as janelas abertas.
Despimos a roupa até ao limite do
pudor. A brisa quente e húmida ajudou-nos a adormecer. Nem demos por parar em
Camaguey.
Sabemos ambos que Santiago de
Cuba não sairá de dentro de nós.
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