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domingo, 2 de fevereiro de 2020
ELEVADOR 12, PISO 8 - A MACA SUJA, de Maria Cecília Garcia
Cheguei atrasada ao hospital, havia greve dos transportes públicos de Lisboa, e demorei um tempo interminável na Avenida Estados Unidos de América, mas os táxis passavam cheios. Decidi andar em direcção da Av. de Roma, quem sabe se ali seria mais fácil… Até que enfim! Apanhei um táxi livre e pedi para me levar ao hospital Santa Maria. Tinhas dado entrada na noite anterior, agora sabia que um derrame tinha invadido o teu cérebro mergulhando-te numa maré vermelha incontrolável. Não tinha a percepção exacta da gravidade até os médicos falarem comigo. Mas ainda havia esperança, a minha esperança, de que pudesses recuperar.
Atravessei rapidamente o corredor principal e dirigi-me ao elevador 12, carreguei no botão para o 8º andar. A meia dúzia de pessoas que tinham entrado no elevador afastaram-se para que pudesse entrar um homem com uma maca.
Reparei que esta maca era diferente das outras, mais velha e de uma cor suja. O maqueiro também era diferente: rosto fechado, macilento, não usava o uniforme de assistente hospitalar. Ele também carregou no botão para o piso 8.
Chegados ao piso 8 o homem da maca saiu, seguiu pelo mesmo corredor onde eu tinha que ir, eu segui-o até ao fundo.
Parou na Unidade de Cuidados Intensivos e entrou na enfermaria 13 e eu fiquei à porta. Seguramente virá buscar alguém para ir fazer exames, quem sabe, talvez tu…pensei.
Espreitei pela frincha da porta, vi algumas enfermeiras e a maca que me tinha precedido estacionada junto à cama onde tu estavas no dia anterior. Só então percebi que o homem era o maqueiro da morgue. Afinal, eu tinha acompanhado o emissário da morte, serena e ignorante…
E vi-te envolto na mortalha, indefeso, pequeno, o teu corpo preparado para seguir. Tu já não estavas ali, havias iniciado outra viagem. Afastei-me violentamente, não queria ver mais. Incrédula, nem reparei nos olhares de pesar que me rodeavam. Segurei-me à parede de braços abertos, impotente, tudo ao meu redor estava envolto numa bruma espessa que não me deixava ver ou pensar. Estava só. Foi tudo tão rápido, não tiveste tempo para definhar, foste desligado piedosamente. Não está certo.
Uma enfermeira repetia continuamente: Não podia ser assim! Não devia ser assim! enquanto me rodeava com os braços. Foi agora mesmo! Já lhe íamos telefonar.
Arrastaram-na para uma salinha, perguntaram se queria um calmante, sacudi a cabeça, não. Ofereceram-me um chá. Creio que tinha algum calmante, mas não me importei. Esmagada pela dor só queria ir embora, já nada fazia ali. Levaram-te, nem vi …
Tenho que falar com os meus filhos, tenho que dar-lhes a notícia…como fazer isso? Foi tudo tão violento, tão rápido, nem deu tempo para respirar.
Mas a vida continua a sua marcha, indiferente às nossas tristezas e angústias. Bate à porta exigente e pragmática. Há tanta coisa a fazer que é preciso agarrá-la pelos cornos, torcer-lhe o pescoço para evitar que nos mate também. Enquanto fazia o caminho em direcção à saída, lembrava-me do dia anterior, quando ainda havia esperança.
O teu corpo estava imóvel, mas davas um sorriso retorcido, esforçado. Respondias às nossas perguntas com um piscar de olhos. Eu segurava a tua mão, não consigo esquecer o movimento do teu dedo polegar, o único que podias mexer, com ele acariciavas o dorso da minha mão, continuamente. Essa foi a nossa última conversa. Eu sei que pedias desculpas e acredito que querias dizer que me amavas. Preciso acreditar nisso.
Enquanto me dirigia à saída, ouvia dentro da minha cabeça, um dos fados que costumavas cantar enquanto adormecias a tua filha. Sim, ela adormecia ouvindo fados.
Hospital santa Maria, com trinta metros de altura,
diga lá senhor Doutor, se o meu irmão não tem cura…
Só me lembro desse refrão sem sentido, mas ainda recordo o som da música. Não sei quem cantava isso…talvez fosse uma invenção tua.
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