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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

MOULES PARA O JANTAR, de Fernando Teixeira















“Acendeu a luz da cozinha e dirigiu-se ao lava-loiça onde deixara o saco com meio quilo de mexilhões pequenos, as moules de que tanto gostava, um dos propósitos do passeio dessa tarde.
Comprara o petisco no terreiro frente à Coopérative Maritime, junto do qual a ria se bifurcava num braço líquido, onde flutuavam duas filas de pequenas embarcações de recreio e botes de pesca. Sob um toldo rectangular branco, cerca de uma dezena de pescadores, acompanhados das mulheres, vendiam nas suas bancas peixe variado e diversos tipos de marisco, desde lagosta, sapateira, amêijoa e, não podia faltar, o tradicional mexilhão.
Misturava-se o odor da maresia com o dos produtos frescos, da mesma forma que o linguajar de vendedores e clientes se mesclava com o grasnar das gaivotas e dos corvos-marinhos, rodopiando no ar, igualmente seduzidos e inebriados por tais cheiros. Os seus gritos estridentes tinham conseguido dispersar os pardais, que tinham procurado refúgio nas copas das árvores. Apenas as aves marinhas eram agora senhoras do espaço aéreo.
Tinha percorrido cada uma das bancas sem pressa, vendo o que aqueles homens e mulheres do mar ofereciam nesse dia, ainda que só lhe interessasse, mesmo, os bivalves de casca preta e longilínea.
Sentia uma enorme simpatia por aquela gente simples, contida numa primeira aproximação, mas revelando-se comunicativa com o desenrolar do tempo, que o tempo tudo compõe quando para isso lhe dá, e ele esperava que o tempo e a habituação à sua pessoa os tornassem mais afectuosos. Gente humilde, que não era por serem cidadãos de uma grande potência económica que deixavam de ter de comer o “pão que o diabo amassou”, neste caso peixe, bivalves ou qualquer outro marisco, capturado com exigência e destreza no mar da Biscaia. Pois que a Natureza, se tudo oferece, não o dá de mão beijada, só o larga em troca de sacrifício, trabalho e muito suor. E aqueles franceses não eram excepção, por muito que merecessem melhor sorte!
Os passos conduziram-no a uma banca específica, era lá que habitualmente fazia as suas compras, o que já tinha motivado olhares de esguelha de outros pescadores, e principalmente das suas distintíssimas esposas, que viam aquele estrangeiro passar e deter-se num dos concorrentes que, embora todos companheiros de pesca, ali disputavam pela melhor venda. Por um motivo que a razão desconhecia, algo levara a que nascesse uma empatia por aquele casal de tez morena e aventais amarelos, que o cativava desde a primeira compra, fosse pela expressão viva e decidida da mulher, fosse pelo sincero e mais sereno olhar do homem numa face gasta pelo ar marítimo, escondida por farto bigode e barba grisalha.
Raspava, agora, a casca dos mexilhões para lhes retirar as “barbas” e demais impurezas, lavando-os de seguida em água abundante. Numa caçarola, refogou cebola e alho bem picados num pouco de azeite. Deixou alourar antes de juntar meio copo de vinho branco.
Mais do que o barulho produzido na preparação dos mexilhões, fora o aroma do refogado que fez o seu pequeno felino aparecer finalmente, vindo roçar-se nas suas pernas.
– Ora, aí estás tu! – exclamou. – Onde estavas escondido?
A resposta foi dada com um miado lânguido a que pareceu não dar importância, atento ao que fazia.
Despejou os mexilhões na caçarola, sentindo que o aroma se transformava de imediato em algo irresistivelmente delicioso, fazendo-o salivar na expectativa do repasto. Tapou o recipiente, esperou um pouco até que os bivalves abrissem e temperou com sal, pimenta, sumo de limão e coentros picados. Estava perfeito!
Em movimentos rápidos, tanto quanto lhe era possível com o companheiro de quatro patas a intrometer-se por entre as pernas, foi levando para a mesa da salinha de refeições um prato, um copo de pé alto, guardanapos de papel e um pedaço de bom pão rústico, que preferia sempre à tradicional baguette. Terminou o vaivém depois de transportar a caçarola fumegante para a mesa e de tirar uma garrafa de vinho branco frisante do frigorífico. Sentou-se, sacou a rolha e serviu o seu copo até meio.
O pequeno felino saltou para a tampa do baú da lenha e ali se deitou, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras, fitando-o de orelhas espetadas no ar.”

in Traços De Pont-Aven
(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

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