O João Cigano, antes de se mudar
aqui para a vila do Barreiro, viveu como cigano legítimo e maltês. Andando de
terra em terra, percorreu todo esse vasto mundo entre o Tejo e o Sul. De Sines
a Sevilha, de Santarém a Huelva, de Setúbal a Cáceres. Conheceu os caminhos
velhos quando ainda eram só caminhos velhos que ligavam as terras velhas.
Aprendeu segredos e bruxedos com a avó que levou com ele para a cova. A avó que
o criou e a quem ele sempre conheceu por velha. Dizia que tinha nascido no
tempo da Rainha Pia. Também ele nasceu no tempo dos reis, nasceu exatamente no
último dia de vida do último rei.
A velha criou-o num berço de pele
de égua pendurado como uma cama de rede debaixo da carroça. Aprendeu a montar
nu ainda antes de aprender a andar vestido, era por isso que nenhum cavalo o
desmontava. Bebeu água dos ribeiros chupando pelo tubo feito da traqueia de um
garanhão, que morreu de velho depois de ter coberto mil éguas, por isso da
garganta dele saíam vozes a que os outros cavalos obedeciam. Tomou banho com a
urina de uma égua virgem com o cio, por isso todos os cavalos o seguiam.
Estas coisas secretas e outras
ainda mais secretas, ouvia-as eu a ele, ao João Cigano.
Ouvi-as num tempo remoto em que
no mundo os adultos eram gigantes e eu quando olhando em frente vi as pessoas
pela altura dos joelhos. Num tempo em que passava a eternidade das tardes de
verão sentado no conforto seguro do colo do meu avô. O meu avô era amigo do
João Cigano. Naquelas tardes de verão, sentavamo-nos os três no pial da casa, à
sombra das paredes, a ver os carros e as pessoas passar. Eles a falarem de
coisas antigas e eu a ouvir. Falavam de cavalos, de touros, de contrabando e de
fugas à polícia. E eu, menino a beber-lhes as palavras.
Quando o João Cigano, veio para o
Barreiro, veio fugido à guarda. Foi por causa de uma situação mal explicada de
um cavalo baio em Montemor, que disseram que ele vendeu... e que depois
envenenou porque o comprador não lhe pagou o combinado. Sei que é mentira,
porque o João Cigano gostava e era irmão de cavalos e nunca faria mal a nenhum
deles.
Por isso é mentira que o João
Cigano tenha envenenado um cavalo.
A verdade é que chegou ao
Barreiro, já passava dos trinta e vinha a fugir do passado e a querer
fazer futuro. Deixou nas estradas
perdidas mulheres que ficaram esquecidas e muitos filhos que ao longo do tempo
foram chegando e que por cá alguns ficaram.
A sorte travessa deste cigano
ditou que dois dias depois de ter chegado, ao final da tarde, se cruzasse com
uma patrulha a cavalo da guarda republicana. A guarda passava e o João na rua,
desprotegido sem porta para entrar nem sítio para se esconder. Tarrenego!
Para felicidade do João e
infelicidade momentânea da guarda, um dos cavalos da guarda, um garanhão negro,
lindo imenso e luzídio, que transportava um dos praças ratinhos importados para
impor a ordem salazarenta na vila e na fábrica, dá em saltar e espernear. Terá
visto bicho ou cheirado cobra ou sentido assombração. Não sabemos porquê e há várias
versões. O que é certo é que, o garanhão onde o guarda beirão ia se assustou e
deu em pinotear.
O cavalo em si, lindo mas pouco
dado a montarias, também não seria de fiar, daí o cabo o ter atribuído a praça
novato que vinha lá da escola da guarda ainda a falar axim.
– Para aprender que a vida também
dá coices – terá dito o cabo aos praças mais velhos...
Quando o cavalo se assustou,
saltou e escoiceou.
O praça da guarda ainda tentou
segurar-se em cima da cela e em vez de dar arreata ao cavalo para que corresse,
quis travá-lo puxando para trás a cabeça ao mesmo tempo que com as pernas e
botas esporadas apertava a barriga do animal. O inevitável aconteceu e não
durou cinco segundos lá em cima. O guarda no chão e o cavalo no ar. A
assistência a rir, o cabo da guarda zangado a exigir ordem e os outros guardas
da patrulha a tentarem acalmar as montadas que o medo, todos sabemos, é um mal
contagioso. E todos os cavalos da patrulha se agitaram.
O garanhão solto a saltar depois
num furioso galope na direção à Baixa da Banheira. A correr pela estrada em
contra-mão. Lindo cavalo negro, que por milagre esquiva uma camioneta de peixe
que vinha a virar a esquina em eventual excesso de velocidade. Voltou o cavalo
a galope na direção do resto da manada dos cavalos e éguas com GNRs em cima. O
pânico foi geral. Com cavalos, éguas e guardas a saltarem a procurar abrigo
numa estrada toda aberta só com casas a fechar.
No meio desta confusão toda, o
João Cigano, sem saber bem porquê falou... Ou melhor, gritou. Nem sequer gritou.
Vocalizou um som gutural que, apesar de bem sonoro, poucos ouviram mas que
travou o garanhão instantes antes de chegar à manada. O cavalo em galope solto,
travou a quatro patas e parou a escassos metros do ajuntamento desordenado. O
bicho olhou para o cigano, baixou a cabeça e veio a andar devagar mas ainda
nervoso a bater com as patas no chão. O cigano ainda estava encostado à parede
a olhar para o cavalo com os olhos semicerrados e a boca a falar baixinho como
que em segredo.
Aí a um metro da parede e do
homem, o cavalo parou, levantou a cabeça e relinchou como se falasse ou
desafiasse ou o cumprimentasse. O João, que tinha os braços cruzados com as
mãos debaixo dos sovacos, sorriu e falou baixinho para o animal. O cavalo ao
ouvir o cigano baixou a cabeça e aproximou-se mais. Neste momento, para espanto
total de todos os presentes, incluindo pessoas, cavalos e guardas, o João
Cigano estendeu as mãos. O cavalo que há minutos era o mais selvagens das
feras, veio com a boca de veludo e a língua áspera lamber os dedos do cigano.
Isto foi assim mesmo que
aconteceu aqui nas ruas do bairro onde vivo e foram muitas as testemunhas que
viram.
O João, constrangido com a
situação, pegou na arreata caída do cavalo e a passo foi dá-lo ao praça que
ainda se sacudia envergonhado da queda.
Sem uma palavra, passou-lhe o
cavalo e desapareceu na esquina.
Mas já estava feito.
O acontecido correu mais depressa
pelas ruas da vila do que o galope do cavalo. Nessa mesma noite, o temido
sargento da guarda, que não gostava de ninguém a não ser dele próprio, da Nossa
Senhora, do Salazar e dos cavalos, deu ordem que queria falar com esse cigano.
-
Sempre quero ver se é como vocês, suas bestas
incompetentes me estão a contar. Quero esse cigano amanhã de manhã aqui no
posto.
Assim mesmo na delicadeza que
sempre o caracterizou, o sargento falou para o cabo e para os dois praças mais
velhos.
Passaram-se dois ou três dias e o
cigano andou sumido, sabe-se lá por onde...
Mas como o Barreiro é quase uma
ilha, e nos anos quarenta do século XX era ainda mais pequeno, o que tinha de
acontecer aconteceu: uma manhã de sol, à porta da vinícula, estava o João
desprevenido a beber um branco e a conversar sobre as melhores luas para
namorar, quando passou um dos guardas, desfardado e de folga. Olhos de
informador atentos a tudo, reconheceu o cigano do cavalo. Homem de poucas falas
e de menos leituras, pouca coragem física mas de grande virtude moral e alguma
esperteza... mal cruzou a esquina, correu direto ao posto da GNR a avisar os
que estavam de serviço.
Nem cinco minutos depois, chegava
o jipe com o cabo e três praças para levarem o cigano ao posto.
-
Ai a minha vida!!! Que eu nã fiz nada para me
levarem preso!
-
Quem é que disse que vais preso. Vem connosco
que o sargento Seia quer falar contigo!
-
Ai... mas eu não conheço o senhori! Não tenho
nada para falar com eli... deve ser engano... Nós os ciganos somos todos
parecidos... Ê tenho um primo que é quase iguali...
-
Não é engano nenhum. É contigo que o sargento
quer falar por causa do cavalo.
Ao ouvir falar no cavalo, o João
viu a sua vida a andar para trás...
Pensou que fosse por causa do
cavalo que vendeu e que depois apareceu morto e que diziam que ele tinha
envenendo. Analfabeto, mas inteligente, o cigano fez o que mais sensato há a
fazer quando vamos ao posto da guarda sem sermos nós a decidir a que horas
vamos: ficar caladinho e esperar que a má hora passe.
Não esperou muito. O sargento
Seia, homem grande e de voz grossa, mal viu o cigano fanzino a entrar com os
seus homens, começou logo aos gritos que se ouviam ao longe.
-
Então tu é que és o cigano que fala com os
cavalos?!?! Sempre quero ver isso. O Valente, o garanhão preto que desmontou o
praça, realmente tem mau feitio mas deixa-se levar... mas quero ver-te a
falares com o meu Relâmpago.
O Relâmpago era o cavalo do
sargento Seia.
Cavalo lindo e bravo. Todo branco
com meias castanhas nas mãos. Todo ele fúria e elegância em estado bruto. Só se
deixava montar pelo próprio sargento Seia, que fazia questão de ser ele a
alimentar o animal e a escová-lo. Até para limpar a box do cavalo tinha de ser
o sargento a levá-lo pela arreata. O sargento Seia não limpava a box que um
sargento não limpa merda... mas fazia o favor de tirar de lá o Relâmpago...
Cavalo bravo como um touro de
lide e bonito como a mais bonita das mulheres.
O João Cigano, ao contrário do
que o sargento esperava, não se assustou com a ideia.
Antes pelo contrário. Quando
percebeu que afinal não era por causa do cavalo de Montemor... até respirou de
alívio.
Baixou a cabeça e seguiu com o
chapéu nas mãos atrás do sargento pelos corredores do posto até à cavalariça.
-
É aquele ali!
Informaram
O João deu a volta evitando
passar por trás do animal designado. O cavalo relinchou e bateu com os cascos
fortes no chão de pedras. Os guardas e o sargento riram entre si.
O cigano aproximou-se devagar e
falou baixinho umas palavras entre o calon, o espanhol e o alentejano. Depois
afagou o focinho do Relâmpago. E o Relâmpago baixou a cabeça e lambeu-lhe as
mãos. Voltou a falar-lhe baixinho ao ouvido. E o cavalo respondeu com um
assentimento e uma cabeçada no cabresto e nas arreatas penduradas na parede.
O cigano enfiou o cabresto e
ajustou as correias no cavalo.
-
O senhor guarda quer que o monte ou é só para
lhe por cabresto?
-
Não é senhor guarda é senhor sargento. Monte o
Relâmpago que eu quero ver!
Ainda sem acreditar no milagre a
que assistia, o sargento tentou testar.
-
Monte sem sela, se o cavalo é manso consigo,
deixa-o subir...
-
Aí senhor sargento, mas sem sela, faz muita
força nas costas do bechinho!
-
Monte sem sela como eu lhe estou a dizer porra!
-
O senhori sargento é que manda...
E assim fez. Com agilidade saltou
para cima do cavalo segurando as arreatas e gingango apenas com as ancas, fez o
cavalo fazer marcha-atrás na box. Depois, de cima do cavalo, perguntou ao
sargento
-
Agora quer que eu vá onde?
-
Saia com ele e dê uma volta aqui no pátio.
Montado no bonito e valioso
cavalo, o João Cigano, por momentos ainda pensou em sair a galope pelo portão
aberto e só parar em Badajoz para negociar o animal.
Mas aqueles seriam maus tempos
para ir a Badajoz... e o João já tinha problemas de sobra para comear
outros....
Por isso fez o que lhe mandaram.
Depois desceu e avisou o
sargento.
-
O cavalo é lindo, mas tem uma fraqueza no pé
esquerdo... ou é jeito antigo que deu ou foi ferradura mal posta... mas como
ele está todo bem calçado... deve ser um jeito antigo. Ligue-lhe a pata com
malvas frescas por dentro da ligadura que isso passa-lhe!
-
Tens razão cigano. Foi um jeito que deu aqui há
duas semans a saltar a ribeira de Coina. Se achas que sabes curar o cavalo,
voltas cá amanhã e vem tratar dele.
Foi assim que o João Cigano ficou
no Barreiro e se tornou veterinário exclusivo do sargento Seia.
Os anos foram passando e o João
não se pode dizer que fosse amigo do sargento da guarda... mas o que é certo é
que o homem respeitava o João Cigano e era a única pessoa a quem pedia
conselhos.
Também sei que, quando o João
Cigano pedia, o sargento Seia lhe fazia favores. Documentação. Passaportes,
bilhetes de identidade e papéis desses. O João contava ao sargento uma
narrativa com um primo cigano fugido a cavalo e perseguido por marido cornudo…
o sargento ria-se e passados uns dias aparecia com os documentos para entregar
ao cigano... só era preciso colar a fotografia...
Nem sempre os documentos eram
para ciganos. Mas sempre foram para perseguidos e quase sempre perseguidos por
cabrões... porque os pides eram todos uns cabrões. Assim aprendi, assim vos
conto.
Mas essa seria outra história. O
João Cigano, contava ao sargento da guarda metade verdade-metade mentira. Dizia
a brincar: sou cinquenta por cento sério.
Quando eu o conheci, o João
Cigano tinha mais de oitenta anos.
Ensinou-me que cavalo, navalha e
mulher não se emprestam a ninguém.
Já muito velhinho, quase a partir
para a terra dos eternos galopes, queixava-se da comida do hospital do Barreiro
e dizia “cavalo de campo não bebe água do balde”....
Dias antes de partir, disse: Prá
semana já não estou cá. Melhor assim, a morte abre a porta da fama e fecha a
janela da inveja!
Era um sábio o João Cigano.
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