Este caso que vos vou contar não
é limpinho.
Trata de um assunto um bocado
sujo. Aviso já, para que as pessoas mais sensíveis possam seguir com a vidinha
e não percam o vosso tempo a ler porcarias.
Mas tenho que partilhar convosco,
meus resistentes heróis leitores e leitoras, porque há mistérios que não devem
ficar encobertos. Além do mais, os segredos são para serem revelados, porque se
não forem revelados, não são segredos, são apenas coisas que nos enchem a memória.
Eu conheço um rapaz que é ladrão.
Se calhar conheço outros, mas que não sei que andam nessa vida. São os
incógnitos, aqueles que depois dizemos: “é pá, nunca imaginei, conheço-o há
tantos anos e nunca pensei!” Este caso é diferente. Eu sei, é ladrão mesmo.
Ou melhor, era ladrão. O Zé do
Gardanho cresceu aqui na rua. Brincámos juntos e sempre nos demos bem. Mas lá
está, cada um faz a sua vida e a vida do Zé era gamar.
Era. Agora o Zé é sério, tem uma
panificadora, ficou com o negócio do padrasto.
Mas quando éramos putos, e depois
em chavalo novo, já o Zé gamava. Não ganhou a alcunha num concurso de pesca a
apanhar alcorrazes. Desde puto sempre lhe deu para gamar.
E fez vida de gamar. Roubava
carros, para andar e para vender os auto-rádios. Roubava casas de pessoas que
estavam de férias. Roubava relotes em parques de campismo daqueles de campistas
sedentários, que têm a relote toda equipada. Roubava lojas de desporto para
vender a roupa de marca. Roubava lojas de eletrodomésticos, isto antes de os
eletrodomésticos começarem a ser vendidos nas lojas grandes ao lado dos
supermercados.
Também é verdade, e justiça lhe
seja feita, que nunca roubou a ninguém aqui na rua. E quando alguém se esquecia
do carro aberto ou de alguma janela do rés-do-chão escancarada, o Zé era o
primeiro a avisar:
-
É pá fecha a janela que anda aqui uma gatunagem
que um gajo não está descansado em lado nenhum.
E claro, nós fechávamos!
O que é certo é que o gajo é que
era o ladrão, mas todos lhe compravam coisas. Mesmo as pessoas mais sérias,
quando precisavam de trocar de televisão, ou de um auto-rádio com leitor de CDs,
ou de um computador pró puto, todos, sem exceção iam ter com o Zé. E o Zé
facilitava.
Quando foi a epidemia da heroína
dos anos noventa e que meio mundo estava agarrado e o outro meio mundo sofria
com os consumos da metade dependente, o Zé continuou a gamar, apesar da
concorrência desleal. Nessa altura, deixou-se dos eletrodomésticos e passou a
trabalhar mais em carros e em peças de carro. Os mecânicos desonestos falavam
com ele e encomendavam, ele arranjava o material e cobrava muito menos que na
marca.
Até que um dia deixou de gamar.
Já lá vão mais de vinte anos.
As pessoas iam falar com o Zé e
ele, meio envergonhado, pedia desculpa e dizia que já não fazia essa vida.
Empregou-se na panificadora do padrasto, assim como assim, já estava habituado
ao turno da noite.
E de repente, da noite pró dia,
deixou de gamar.
Sei disto, não foi da boca de
ninguém que ouvi contar. Foi o Zé que me disse.
Um amigo próximo, músico, o que
quer dizer quase sempre sem dinheiro, um dia perguntou-me se eu conhecia alguém
que tivesse algum amplificador para vender... o amplificador dele tinha dado o
berro!
Pois nesse próprio dia encontrei
o Zé do Gardanho e mandei-lhe a boca:
-
Zé, com respeito ao respeito, tenho de falar
contido aí de uma situação.
-
Diz lá mano, sabes que aqui o Zé, só não ajuda
se não puder!
-
É Zé, tenho aí um chavalo amigo que precisa de
um amplificador para uma guitarra, tu às vezes aparece-te material desse na
dispensa, não tens por lá uma coisinha bacana aqui pró amigo do teu amigo?
-
Olha, pra caso, até tive uns quatro que
despachei ao desbarato..., mas agora neste momento não tenho nada....
-
E não consegues dar um jeitinho?
-
Não. Não posso. Já não faço essa vida. Arranjei
trabalho na panificadora do meu padrasto e agora é só vida honesta. Já não ando
no gardanho!
-
A sério? Mas o que é que te deu? Ficaste doente?
Foste catado? Eles andam atrás de ti?
-
O quê? A polícia? A mim? Não mano. Nada disso,
teve mesmo de ser. Foi de repente. Acabei com essa vida e meti-me a padeiro!
Porque, já todos sabemos, que
conversar dá sede, fomos à tasca beber uma. Era no tempo em que eu ainda bebia.
E foi na tasca vazia, que é
propícia a confidências que ele me contou.
Deixou de gamar porque teve um
sonho.
Um sonho com o pai. O pai dele
morreu de desastre de automóvel quando ele tinha três anos... Nem eu nem ele
conhecemos o pai dele. Conhecemos a mãe que todos chamavam a Berta do Vizinho
Elizeu, mesmo depois de se ter casado com o padeiro. E o pai do Zé era o
Vizinho Eliseu. Homem estimado aqui nesta pequena comunidade. Um homem popular
no bairro que deixou saudades. Pois foi precisamente o pai do Zé quem lhe
apareceu num sonho e lhe disse que ele tinha de deixar de gamar. E o Zé, que
acredita no inexplicável, fez o que tinha a fazer: deixou.
-
Pois é natural... um pai não deve gostar que o
filho ande a roubar...
Moralizei eu...
Nada disso. O meu pai, quer dizer
o espírito do meu pai, sempre me ajudou na vida do gardanho. Foi o espírito do
meu pai que me ensinou os truques todos das portas e fechaduras.
Realmente o falecido era
serralheiro, pensei eu. Um grande artista, segundo consta aqui na rua. O portão
do quintal cá de casa ainda foi o Vizinho Eliseu que fez.
O Zé, com a garganta lubrificada,
continuou.
E foi o espírito do meu pai que
me ensinou o segredo de nunca ser apanhado. Era segredo, agora já posso contar. Pois é assim, muito simples.
O segredo para nunca ser apanhado é um gajo cagar no sítio que está a roubar.
-
A sério? Mas cagar como? Cagar, cagar mesmo?
-
Sim, fazer cocó. Cagar, obrar, defecar.
Fiquei calado com a mesma cara
que vocês, que têm a paciência de me ler, estão a fazer agora: entre o enojado
e o surpreendido.
O Zé explicou.
Pois quando se entra num sítio
para roubar, a primeira coisa a fazer é ir aliviar a tripa. Tem de se arranjar
vontade. Às vezes os nervos ajudam, porque entrar num sítio que não é o nosso,
trazer coisas que o dono não se quer desfazer delas... mete nervoso... Outras
vezes é preciso fazer um bocado de força. No caso do Zé, já tinha o intestino
educado e segundo o que ele me contou, era automático. Tipo sumo de uma
laranja, bica da manhã e cigarro: receita infalível.
Se fosse casa ou loja, ia à casa
de banho, claro. O Zé era ladrão, mas nunca foi porco. Se fosse carro, e nos
últimos tempos só trabalhava em carros, levava um baldinho daqueles de plástico
das azeitonas e fazia dentro do balde. Depois mandava ao rio e pronto, assim
resolvido. Mas fazia sempre o serviço. Fazia o serviço e dizia uma oração a São
Dimas que o pai lhe ensinou, também em sonho e era certo e sabido que não o
apanhavam.
– Amigo, estou a dizer-te isto,
porque foram mais de vinte anos sempre a gamar e nunca fui apanhado. A única
vez que fui chamado à polícia foi por causa daquela vez em que fui às trombas
ao Carademuseu e que o merdas foi fazer queixa de mim... tu sabes que tavas lá.
Sabia sim. Estava lá e também eu
fiquei com vontade de bater no Carademuseu que por causa da vizinha Berta ter
sacudido um tapete à janela, chamou todos os nomes à mulher. Que lhe estava a
sujar o carro que tinha acabado de lavar.... Ora, o Zé do Gardanho estava a
chegar a casa da mãe, e claro que não gostou de ver destratar assim a
progenitora. E não gostando, bateu um bocado no Carademuseu que foi para o hospital
concertar as costelas e ser operado ao maxilar que se partiu contra o passeio.
Eu confirmei que estava lá e vi.
E se não fosse o Zé a aviar no Carademuseu, seria outro qualquer... porque o
gajo estava mesmo a pedir.
Mas o Carademuseu, tem um primo
advogado e meteu o caso em tribunal e depois o Zé teve de pagar uma
indemnização.
Foi a única vez que teve
problemas com a polícia. Antes disso, nunca, depois disso, nunca mais.
Mais de vinte anos a gamar e
nunca foi preso, nem sequer chamado ao posto para prestar declarações.
Realmente ali havia coisa.
Voltei ao tema do bruxedo para
não ser apanhado.
– Mas que oração era essa? Quem é
o São Dimas?
– São Dimas é o Santo dos
ladrões. Foi o bacano que foi crucificado ao lado do Cristo... andava a gamar
lá na palestina e foi de saco. Depois quando os romanos fizeram a folha ao
Cristo, também espetaram o São Dimas na cruz.
Eu sou pouco letrado e da bíblia
sei pouco... acreditei na história.
– E que oração é essa que o teu
pai te ensinou em sonhos?
O Zé, fez um ar sério e quase em
segredo, sussurrou:
– São Dimas, meu Santo padroeiro,
foste santo e foste ladrão, deixa-me fazer o meu dinheiro e aqui deixo o
cagalhão!
– A sério? Tás a gozar comigo
pá!!!
– Não estou mano, juro que não!
Juro por tudo o que é mais sagrado, juro pela alminha do meu pai.
Eu não quis que jurasse mais.
Acreditei nele.
Passaram duas décadas sobre esta
conversa.
Hoje voltei a encontrar-me com o
Zé do Gardanho, agora já não rouba, mas as alcunhas aqui no bairro, pegam-se
para a vida e às vezes passam de pais para filhos e de filhos para netos.
Encontrei o Zé nas finanças. Estávamos
ambos na posição de vítima. Eu a entrar e ele a sair.
Voltou-me tudo à memória porque o
senhor que me atendeu, tinha uma placa ao peito onde estava escrito: Dimas.
Agora digam lá que é coincidência.