quinta-feira, 5 de março de 2020

NOTURNO ARCO-ÍRIS - ZÉ DO GARDANHO E O DIMAS
















Este caso que vos vou contar não é limpinho.
Trata de um assunto um bocado sujo. Aviso já, para que as pessoas mais sensíveis possam seguir com a vidinha e não percam o vosso tempo a ler porcarias.
Mas tenho que partilhar convosco, meus resistentes heróis leitores e leitoras, porque há mistérios que não devem ficar encobertos. Além do mais, os segredos são para serem revelados, porque se não forem revelados, não são segredos, são apenas coisas que nos enchem a memória.
Eu conheço um rapaz que é ladrão. Se calhar conheço outros, mas que não sei que andam nessa vida. São os incógnitos, aqueles que depois dizemos: “é pá, nunca imaginei, conheço-o há tantos anos e nunca pensei!” Este caso é diferente. Eu sei, é ladrão mesmo.
Ou melhor, era ladrão. O Zé do Gardanho cresceu aqui na rua. Brincámos juntos e sempre nos demos bem. Mas lá está, cada um faz a sua vida e a vida do Zé era gamar.
Era. Agora o Zé é sério, tem uma panificadora, ficou com o negócio do padrasto.
Mas quando éramos putos, e depois em chavalo novo, já o Zé gamava. Não ganhou a alcunha num concurso de pesca a apanhar alcorrazes. Desde puto sempre lhe deu para gamar.
E fez vida de gamar. Roubava carros, para andar e para vender os auto-rádios. Roubava casas de pessoas que estavam de férias. Roubava relotes em parques de campismo daqueles de campistas sedentários, que têm a relote toda equipada. Roubava lojas de desporto para vender a roupa de marca. Roubava lojas de eletrodomésticos, isto antes de os eletrodomésticos começarem a ser vendidos nas lojas grandes ao lado dos supermercados.
Também é verdade, e justiça lhe seja feita, que nunca roubou a ninguém aqui na rua. E quando alguém se esquecia do carro aberto ou de alguma janela do rés-do-chão escancarada, o Zé era o primeiro a avisar:
-        É pá fecha a janela que anda aqui uma gatunagem que um gajo não está descansado em lado nenhum.
E claro, nós fechávamos!
O que é certo é que o gajo é que era o ladrão, mas todos lhe compravam coisas. Mesmo as pessoas mais sérias, quando precisavam de trocar de televisão, ou de um auto-rádio com leitor de CDs, ou de um computador pró puto, todos, sem exceção iam ter com o Zé. E o Zé facilitava.
Quando foi a epidemia da heroína dos anos noventa e que meio mundo estava agarrado e o outro meio mundo sofria com os consumos da metade dependente, o Zé continuou a gamar, apesar da concorrência desleal. Nessa altura, deixou-se dos eletrodomésticos e passou a trabalhar mais em carros e em peças de carro. Os mecânicos desonestos falavam com ele e encomendavam, ele arranjava o material e cobrava muito menos que na marca.
Até que um dia deixou de gamar. Já lá vão mais de vinte anos.
As pessoas iam falar com o Zé e ele, meio envergonhado, pedia desculpa e dizia que já não fazia essa vida. Empregou-se na panificadora do padrasto, assim como assim, já estava habituado ao turno da noite.
E de repente, da noite pró dia, deixou de gamar.
Sei disto, não foi da boca de ninguém que ouvi contar. Foi o Zé que me disse.
Um amigo próximo, músico, o que quer dizer quase sempre sem dinheiro, um dia perguntou-me se eu conhecia alguém que tivesse algum amplificador para vender... o amplificador dele tinha dado o berro!
Pois nesse próprio dia encontrei o Zé do Gardanho e mandei-lhe a boca:
-        Zé, com respeito ao respeito, tenho de falar contido aí de uma situação.
-        Diz lá mano, sabes que aqui o Zé, só não ajuda se não puder!
-        É Zé, tenho aí um chavalo amigo que precisa de um amplificador para uma guitarra, tu às vezes aparece-te material desse na dispensa, não tens por lá uma coisinha bacana aqui pró amigo do teu amigo?
-        Olha, pra caso, até tive uns quatro que despachei ao desbarato..., mas agora neste momento não tenho nada....
-        E não consegues dar um jeitinho?
-        Não. Não posso. Já não faço essa vida. Arranjei trabalho na panificadora do meu padrasto e agora é só vida honesta. Já não ando no gardanho!
-        A sério? Mas o que é que te deu? Ficaste doente? Foste catado? Eles andam atrás de ti?
-        O quê? A polícia? A mim? Não mano. Nada disso, teve mesmo de ser. Foi de repente. Acabei com essa vida e meti-me a padeiro!
Porque, já todos sabemos, que conversar dá sede, fomos à tasca beber uma. Era no tempo em que eu ainda bebia.
E foi na tasca vazia, que é propícia a confidências que ele me contou.
Deixou de gamar porque teve um sonho.
Um sonho com o pai. O pai dele morreu de desastre de automóvel quando ele tinha três anos... Nem eu nem ele conhecemos o pai dele. Conhecemos a mãe que todos chamavam a Berta do Vizinho Elizeu, mesmo depois de se ter casado com o padeiro. E o pai do Zé era o Vizinho Eliseu. Homem estimado aqui nesta pequena comunidade. Um homem popular no bairro que deixou saudades. Pois foi precisamente o pai do Zé quem lhe apareceu num sonho e lhe disse que ele tinha de deixar de gamar. E o Zé, que acredita no inexplicável, fez o que tinha a fazer: deixou.
-        Pois é natural... um pai não deve gostar que o filho ande a roubar...
Moralizei eu...
Nada disso. O meu pai, quer dizer o espírito do meu pai, sempre me ajudou na vida do gardanho. Foi o espírito do meu pai que me ensinou os truques todos das portas e fechaduras.
Realmente o falecido era serralheiro, pensei eu. Um grande artista, segundo consta aqui na rua. O portão do quintal cá de casa ainda foi o Vizinho Eliseu que fez.
O Zé, com a garganta lubrificada, continuou.
E foi o espírito do meu pai que me ensinou o segredo de nunca ser apanhado. Era segredo, agora  já posso contar. Pois é assim, muito simples. O segredo para nunca ser apanhado é um gajo cagar no sítio que está a roubar.
-        A sério? Mas cagar como? Cagar, cagar mesmo?
-        Sim, fazer cocó. Cagar, obrar, defecar.
Fiquei calado com a mesma cara que vocês, que têm a paciência de me ler, estão a fazer agora: entre o enojado e o surpreendido.
O Zé explicou.
Pois quando se entra num sítio para roubar, a primeira coisa a fazer é ir aliviar a tripa. Tem de se arranjar vontade. Às vezes os nervos ajudam, porque entrar num sítio que não é o nosso, trazer coisas que o dono não se quer desfazer delas... mete nervoso... Outras vezes é preciso fazer um bocado de força. No caso do Zé, já tinha o intestino educado e segundo o que ele me contou, era automático. Tipo sumo de uma laranja, bica da manhã e cigarro: receita infalível.
Se fosse casa ou loja, ia à casa de banho, claro. O Zé era ladrão, mas nunca foi porco. Se fosse carro, e nos últimos tempos só trabalhava em carros, levava um baldinho daqueles de plástico das azeitonas e fazia dentro do balde. Depois mandava ao rio e pronto, assim resolvido. Mas fazia sempre o serviço. Fazia o serviço e dizia uma oração a São Dimas que o pai lhe ensinou, também em sonho e era certo e sabido que não o apanhavam.
– Amigo, estou a dizer-te isto, porque foram mais de vinte anos sempre a gamar e nunca fui apanhado. A única vez que fui chamado à polícia foi por causa daquela vez em que fui às trombas ao Carademuseu e que o merdas foi fazer queixa de mim... tu sabes que tavas lá.
Sabia sim. Estava lá e também eu fiquei com vontade de bater no Carademuseu que por causa da vizinha Berta ter sacudido um tapete à janela, chamou todos os nomes à mulher. Que lhe estava a sujar o carro que tinha acabado de lavar.... Ora, o Zé do Gardanho estava a chegar a casa da mãe, e claro que não gostou de ver destratar assim a progenitora. E não gostando, bateu um bocado no Carademuseu que foi para o hospital concertar as costelas e ser operado ao maxilar que se partiu contra o passeio.
Eu confirmei que estava lá e vi. E se não fosse o Zé a aviar no Carademuseu, seria outro qualquer... porque o gajo estava mesmo a pedir.
Mas o Carademuseu, tem um primo advogado e meteu o caso em tribunal e depois o Zé teve de pagar uma indemnização.
Foi a única vez que teve problemas com a polícia. Antes disso, nunca, depois disso, nunca mais.
Mais de vinte anos a gamar e nunca foi preso, nem sequer chamado ao posto para prestar declarações.
Realmente ali havia coisa.
Voltei ao tema do bruxedo para não ser apanhado.
– Mas que oração era essa? Quem é o São Dimas?
– São Dimas é o Santo dos ladrões. Foi o bacano que foi crucificado ao lado do Cristo... andava a gamar lá na palestina e foi de saco. Depois quando os romanos fizeram a folha ao Cristo, também espetaram o São Dimas na cruz.
Eu sou pouco letrado e da bíblia sei pouco... acreditei na história.
– E que oração é essa que o teu pai te ensinou em sonhos?
O Zé, fez um ar sério e quase em segredo, sussurrou:
– São Dimas, meu Santo padroeiro, foste santo e foste ladrão, deixa-me fazer o meu dinheiro e aqui deixo o cagalhão!
– A sério? Tás a gozar comigo pá!!!
– Não estou mano, juro que não! Juro por tudo o que é mais sagrado, juro pela alminha do meu pai.
Eu não quis que jurasse mais. Acreditei nele.
Passaram duas décadas sobre esta conversa.
Hoje voltei a encontrar-me com o Zé do Gardanho, agora já não rouba, mas as alcunhas aqui no bairro, pegam-se para a vida e às vezes passam de pais para filhos e de filhos para netos.
Encontrei o Zé nas finanças. Estávamos ambos na posição de vítima. Eu a entrar e ele a sair.
Voltou-me tudo à memória porque o senhor que me atendeu, tinha uma placa ao peito onde estava escrito: Dimas.
Agora digam lá que é coincidência.



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