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quinta-feira, 30 de abril de 2020

O VALOR DA PRIVACIDADE, de Fernando Teixeira















Na ordem jurídica nacional, a Lei nº 58/2019 assegura a execução do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, no que concerne ao tratamento e circulação de dados das pessoas singulares, visando a sua protecção.
Esta questão tornou-se ainda mais premente após o escândalo da britânica Cambridge Analytica que, veio a saber-se, entre 2014 e 2015, terá utilizado indevidamente os dados recolhidos por uma aplicação da rede social Facebook para chegar aos dados pessoais de 87 milhões de cidadãos, dando origem a perfis de consumidores para fins de marketing estratégico em campanhas políticas que terão influenciado o resultado das eleições para a presidência dos Estados Unidos em 2016.
Desde então, a navegação na Internet nunca mais foi a mesma. Sob a capa da protecção dos nossos dados pessoais, somos bombardeados diariamente com separadores que se sobrepõem à janela do browser, impedindo-nos de continuar a navegar na net, a menos que se clique num botão “ACEITO”. E o que estamos realmente a aceitar, apenas para podermos prosseguir?
O separador diz “Damos valor à sua privacidade”, a título de nos sossegar. E, logo a seguir, Nós e os nossos parceiros utilizamos determinadas tecnologias no nosso site, como os cookies, para personalizarmos os conteúdos e a publicidade, proporcionarmos funcionalidades das redes sociais e analisarmos o nosso tráfego. Clique em baixo para consentir a utilização destas tecnologias na web. Pode mudar de ideias e alterar as suas opções de consentimento em qualquer momento, voltando a este site.”
Não tendo tempo para ler os detalhes, como se não bastasse o incómodo de ver a nossa tarefa interrompida uma vez mais pelo maldito separador, o impulso é clicar em “ACEITO”, única forma de prosseguir e ver a página que queremos consultar. Porém, se nos dermos ao trabalho de abrir o separador “Consultar detalhes”, somos surpreendidos por um conjunto de itens que definem quais os tipos de dados, nossos, que estão a ser revelados a entidades terceiras.
Se o fizermos, ficamos a saber que são recolhidas informações sobre a nossa utilização dos sites, sobre os nossos interesses, sobre os assuntos que nos foram apresentados, a frequência e respectivo tempo de visualização, e de que forma reagimos a eles, se clicámos num anúncio ou se fizemos uma compra, com o fim de que essas entidades possam personalizar futuros conteúdos e publicidade de acordo com o nosso perfil de utilização. Isso é conseguido através do acesso e guarda de informações conservadas nos nossos dispositivos, tais como identificadores de publicidade, identificadores de dispositivos, cookies e tecnologias semelhantes.
Neste âmbito, são combinados dados de fontes offline, inicialmente recolhidos noutros contextos (?), com dados recolhidos online, são tratados dados de forma a associar diferentes dispositivos pertencentes ao mesmo utilizador e são recolhidos dados de localização geográfica, tudo para sustentar uma ou mais finalidades (??).
Todas estas permissões estão accionadas por defeito, quando clicamos no botão “ACEITO”. Se verificarmos quais são as entidades associadas, verificamos com estupefacção que essas informações relativas aos nossos perfis de utilização são transmitidas a um número gigantesco de empresas nacionais e estrangeiras, as quais os usam, sabe-se lá para quê. E ainda dizem que dão valor à nossa privacidade…!!!
Vivemos num mundo hipócrita. O que antes se fazia sem o nosso conhecimento faz-se agora de igual forma e com esse mesmo consentimento. É o que resulta desta política encapotada de protecção de dados que não nos protege de coisa alguma, antes legaliza que tais entidades espiem as nossas acções, a nossa vida, a menos que, supostamente, tenhamos o conhecimento e o cuidado de desactivar tais funcionalidades e a correspondente transmissão de dados. Devia ser assim, mas… surpresa, pura falácia: se desactivarmos as funcionalidades opcionais (porque algumas são obrigatórias), guardando as nossas opções, alguns cliques depois aparece novo pedido de consentimento, com as mesmas funcionalidades novamente activas, não adiantando quais foram as opções de consentimento que se gravaram anteriormente! Ou seja, pouco interessa a vontade do utilizador de que a sua privacidade seja respeitada. Que brincadeira…

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

O VALOR DA PRIVACIDADE, de Fernando Teixeira














Na ordem jurídica nacional, a Lei nº 58/2019 assegura a execução do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, no que concerne ao tratamento e circulação de dados das pessoas singulares, visando a sua protecção.

Esta questão tornou-se ainda mais premente após o escândalo da britânica Cambridge Analytica que, veio a saber-se, entre 2014 e 2015, terá utilizado indevidamente os dados recolhidos por uma aplicação da rede social Facebook para chegar aos dados pessoais de 87 milhões de cidadãos, dando origem a perfis de consumidores para fins de marketing estratégico em campanhas políticas que terão influenciado o resultado das eleições para a presidência dos Estados Unidos em 2016.

Desde então, a navegação na Internet nunca mais foi a mesma. Sob a capa da protecção dos nossos dados pessoais, somos bombardeados diariamente com separadores que se sobrepõem à janela do browser, impedindo-nos de continuar a navegar na net, a menos que se clique num botão “ACEITO”. E o que estamos realmente a aceitar, apenas para podermos prosseguir?

O separador diz “Damos valor à sua privacidade”, a título de nos sossegar. E, logo a seguir, Nós e os nossos parceiros utilizamos determinadas tecnologias no nosso site, como os cookies, para personalizarmos os conteúdos e a publicidade, proporcionarmos funcionalidades das redes sociais e analisarmos o nosso tráfego. Clique em baixo para consentir a utilização destas tecnologias na web. Pode mudar de ideias e alterar as suas opções de consentimento em qualquer momento, voltando a este site.”

Não tendo tempo para ler os detalhes, como se não bastasse o incómodo de ver a nossa tarefa interrompida uma vez mais pelo maldito separador, o impulso é clicar em “ACEITO”, única forma de prosseguir e ver a página que queremos consultar. Porém, se nos dermos ao trabalho de abrir o separador “Consultar detalhes”, somos surpreendidos por um conjunto de itens que definem quais os tipos de dados, nossos, que estão a ser revelados a entidades terceiras.

Se o fizermos, ficamos a saber que são recolhidas informações sobre a nossa utilização dos sites, sobre os nossos interesses, sobre os assuntos que nos foram apresentados, a frequência e respectivo tempo de visualização, e de que forma reagimos a eles, se clicámos num anúncio ou se fizemos uma compra, com o fim de que essas entidades possam personalizar futuros conteúdos e publicidade de acordo com o nosso perfil de utilização. Isso é conseguido através do acesso e guarda de informações conservadas nos nossos dispositivos, tais como identificadores de publicidade, identificadores de dispositivos, cookies e tecnologias semelhantes.

Neste âmbito, são combinados dados de fontes offline, inicialmente recolhidos noutros contextos (?), com dados recolhidos online, são tratados dados de forma a associar diferentes dispositivos pertencentes ao mesmo utilizador e são recolhidos dados de localização geográfica, tudo para sustentar uma ou mais finalidades (??).

Todas estas permissões estão accionadas por defeito, quando clicamos no botão “ACEITO”. Se verificarmos quais são as entidades associadas, verificamos com estupefacção que essas informações relativas aos nossos perfis de utilização são transmitidas a um número gigantesco de empresas nacionais e estrangeiras, as quais os usam, sabe-se lá para quê. E ainda dizem que dão valor à nossa privacidade…!!!

Vivemos num mundo hipócrita. O que antes se fazia sem o nosso conhecimento faz-se agora de igual forma e com esse mesmo consentimento. É o que resulta desta política encapotada de protecção de dados que não nos protege de coisa alguma, antes legaliza que tais entidades espiem as nossas acções, a nossa vida, a menos que, supostamente, tenhamos o conhecimento e o cuidado de desactivar tais funcionalidades e a correspondente transmissão de dados. Devia ser assim, mas… surpresa, pura falácia: se desactivarmos as funcionalidades opcionais (porque algumas são obrigatórias), guardando as nossas opções, alguns cliques depois aparece novo pedido de consentimento, com as mesmas funcionalidades novamente activas, não adiantando quais foram as opções de consentimento que se gravaram anteriormente! Ou seja, pouco interessa a vontade do utilizador de que a sua privacidade seja respeitada. Que brincadeira…


O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

MARIA (CONTINUAÇÃO), de Mafalda Pascoal















Os pequeninos estavam todos num montinho, eram tão lindos... ela segurou num, fez-lhe festinhas e ele gostou, pois não fugiu... Maria lembrou-se que tinha que ir áquele sítio lindo... levantou-se e começou a caminhar apressadamente para chegar lá depressa, de repente à sua frente eram só coelhos aos saltos, mais feliz Maria ficou. Assim já não faria o caminho sózinha, pensou para si.
Já faltava pouco para chegar áquele lugar lindo e, Maria reparou que havia mais animais diferentes à sua frente... havia um que era parecido com as cabras que tinha lá em casa e, nas árvores, haviam tantos passarinhos de tantas cores, fazia lembrar o arco-íris com tantas cores lindas e vivas. Assim chegou áquele maravilhoso lugar! Ficou estarrecida e pensou,«se eu conseguir arranjar caminho para chegar à água e aos frutos naquelas árvores, se calhar já cá fico hoje...» olhou para o céu, o sol estava no meio, ainda tinha algum tempo antes que ele se escondesse para resolver se ficava já ou se voltava para a árvore-mãe.
Começou a sua pesquisa, sempre com os animais e aves a acompanhá-la, reparou nos coelhos que dormiram com ela e não estavam todos, especialmente os pequeninos, se calhar tinham ficado com as mães, pois são tão pequeninos que se perderiam, assim como lhe tinha acontecido a ela. Então decidiu que, mesmo que encontrasse caminho e sítio para ficar, regressaria à árvore-mãe para depois trazer todos consigo para aquele sítio maravilhoso, e assim foi. Então procurou, procurou com a ajuda dos animais e aves que, lhe parecia, todos eles se comunicavam entre si e entendiam o que Maria queria fazer... era lindo de se ver, todos em sintonia...
Maria descobriu uma côncavidade na rocha, era um espaço grande, e era parecido com uma divisão e das grandes, da mansão de seu pai, a entrada era mais pequena e entrando ficava maior, o tecto era arredondado, havia saliências no chão encostadas às paredes, para Maria, ali era o mais parecido com uma casa, tinha espaço para si e para os seus novos companheiros e, se chovesse, não lhes choveria em cima.
Embora Maria fosse uma criança de tenra idade, estava por sua conta, tomava decisões consoante as suas necessidades... agora estava um pouco mais confiante pois já tinha companhia. Olhou para o céu, o sol já estava a cair para o outro lado. O que queria dizer que já não lhe restava muito tempo até anoitecer... pensou um pouco, já tinha conseguido uma casa, já tinha mais amigos, iria regressar à árvor-mãe e no dia seguinte viria novamente para novas descobertas. Assim regressou à árvore-mãe, rodeada de animais, que entretanto se comunicaram entre si, vindo todas as espécies em sua direcção visto terem chegado à conclusão de que Maria era inofensiva e tinha o coração puro como o de todos eles.
Chegaram à árvore-mãe e lá estavam os pequeninos todos aninhados com as suas mães, tão lindos...
Já estava a ficar noite e Maria deitou-se no seu leito de ervas, pensou no seu pai, deveria estar muito preocupado sem saber dela... fez beicinho e as lágrimas rolaram pelo seu rosto de menina, os animais aperceberam-se da sua tristeza, chegaram-se mais para ela  e acarinharam-na conforme podiam a sabiam... e assim mais uma noite passou.
Pela manhã, a nossa menina acordou, agora já acorda de uma forma menos angustiada, já tem muitos amigos novos que não a deixam só, e a cada dia que passa aparecem mais. Primeiro apareceram os coelhos, depois as gazelas e muitos passarinhos, a seguir os macaquitos com as suas mães. Um pouco mais distantes, apareciam de vez em quando lobos que não se chegavam muito perto, tal como a mãe urso com a sua cria, estes, por enquanto, só os seguiam muito atrás ou em paralelo mas distantes.
Com todos estes amigos animais, Maria começou nova caminhada até à sua futura casa. Chegou lá e ficou maravilhada, tudo era tão bonito, a água que corria em cascata, sem se ver onde caía ou de onde nascia formava arco-íris, o que fazia daquela paisagem um paraíso.
   (Continua)

A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990. 

sábado, 25 de abril de 2020

AQUELE DIA DE ABRIL, de Fernando Teixeira















O dia da Revolução dos Cravos, com o dramatismo da evolução dos acontecimentos e das operações militares, acentuado pela esperança de um tempo novo e pela ânsia de liberdade gritada a plenos pulmões no fim daquela tarde de Abril de 1974, permanecerá sempre na memória daqueles que o viveram e sentiram, então exultantes, a vitória que iria conduzir finalmente ao termo do regime político vigente.
Nos dias seguintes, a alegria do povo foi contagiante, enchendo as ruas e as praças de um país inteiro em festa, inebriado pela esfuziante novidade da liberdade conquistada. Cravos lançados ao ar ou transportados na lapela, ao som de canções antes proibidas e de gritos de que o povo unido jamais seria vencido, abraços entre amigos e desconhecidos ou entre militares e populares agradecidos… Era tempo de sonhar, de concretizar promessas adiadas, de projectar o futuro, de dar cumprimento aos objectivos traçados pelo Movimento das Forças Armadas: descolonizar, democratizar e desenvolver.
Passada a euforia, o nascimento da democracia trouxe meses conturbados, em que a súbita libertação de pulsões, aprisionadas por décadas de censura e repressão do Estado Novo, conduziu ao extremar de posições políticas e ideológicas, gerou conflitos e provocou instabilidade social. Passos titubeantes de um regime novo que, ainda criança, aprendia então a caminhar. No Parlamento, sucessivos e voláteis governos provisórios percorreram um tortuoso caminho que desembocaria nas primeiras eleições livres. Com todas as crises de crescimento, a democracia teve a sua juventude, sempre procurando um rumo próprio, até se tornar adulta, com todas as virtudes e defeitos de qualquer ser adulto.
Após a adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1986, Portugal consolidou o seu regime democrático numa Europa aberta. Nos anais da História, para trás tinham ficado décadas de um país fechado sobre si mesmo, analfabeto e atrasado, estrangulado no seu desenvolvimento e na abertura ao exterior por um regime fascista que se regulava e sustentava a si próprio. O natural progresso e o desenvolvimento tecnológico dos anos posteriores iriam ajudar a consolidar o novo regime e dar novas perspectivas a um modus vivendi da sociedade portuguesa.
Passaram-se 46 anos desde o 25 de Abril de 1974. Portugal muito mudou desde então, para melhor. Alguns poderão dizer que essa mudança seria inevitável com a evolução política e económica da Europa Ocidental, na aproximação e entrada no séc. XXI. Mas o regime democrático teve também um papel muito importante nessa evolução, ao permitir que o nosso país abrisse os seus horizontes e abraçasse o futuro.
Como qualquer moeda que tem duas faces, o caminho que trilhámos após a Revolução dos Cravos não foi, e continua a não ser, imaculado. Nem só de aspectos positivos se reveste o Portugal de Abril. Em muitas componentes da nossa vida política, social e económica, ainda há um longo caminho a percorrer, nunca terminado. À modernização do nosso país, há que conseguir ganhar pontos, muitos pontos, no combate à fraude e à evasão fiscal, no combate à corrupção e ao tráfico de influências, há que garantir uma Justiça célere e eficaz, implementar uma mais justa distribuição da riqueza, valorizando o mérito e o trabalho, garantir condições de vida digna aos mais desfavorecidos, eliminando bolsas de pobreza, dignificar o Ensino e os nossos professores, fortalecer o Sistema Nacional de Saúde e honrar os seus profissionais, dar a oportunidade de realização e saída profissional aos nossos jovens, combater assimetrias… são tantas, tantas as arestas que ainda temos por limar!
Uma última palavra para um homem que não podemos esquecer, antes honrar: o Capitão Salgueiro Maia, cuja determinação e valentia tiveram um papel fundamental no dia 25 de Abril de 1974, para que o nosso país transitasse para um regime democrático, da forma como aconteceu. Um homem que fica na memória de quem viveu a Revolução dos Cravos e que, infelizmente, nos deixou cedo demais!

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)


quinta-feira, 23 de abril de 2020

O FUNERAL DA MINHA AVÓ, de Maria Cecília Garcia















Ainda tínhamos uma longa viagem pela frente antes de chegar à aldeia, percorrer os 69 km de estrada levaria mais de duas horas.
Naquela ilha, filha de um vulcão, de serras cortadas a pique, os caminhos subiam e desciam, contornavam as montanhas escarpadas, desciam vertiginosamente até ao nível do mar para poucos minutos depois estar novamente junto à serra e, através de íngremes estradas desciam, outra vez, enchendo os olhos com uma paisagem estonteante. 
            Uma ilha, com apenas meia centena de quilómetros de ponta a ponta, conseguia, através de sinuosas estradas, duplicar o seu tamanho.
Apenas enxergava as duas faixas de luz dos faróis do táxi verde e preto que iluminavam o caminho;, ao atravessar a cidade a profusa iluminação de Natal deslumbrou-me, mas imediatamente mergulhámos no negrume, encontrando apenas, aqui e acolá, as cintilações baças de uma aldeia que desaparecia rapidamente, como se fosse uma miragem, e era de novo o breu ao atravessar um furado, pequeno túnel escavado na rocha, assustador, estreito, de pedras húmidas, salientes, agressivas como a boca de um leão. Tudo me deslumbrava, mas só pensava em chegar. Enquanto não chegasse à aldeia não tinha chegado a casa, estava no caminho, na terra de ninguém. Os murmúrios das conversas no automóvel pareciam vir de longe, como um eco. Às perguntas que me faziam, eu respondia como um autómato, cega pela paisagem que não alcançava a ver mas tentava imaginar e as emoções que me assolavam.
Lembrei-me da minha avó, motivo desta viagem, e perguntei por ela.Partira na manhã desse dia, não esperou pela minha chegada, mas o seu corpo, vago e inerte, permanecia, para que eu a pudesse acompanhar até a sua última morada.
Sobressaltei-me. Constatei que nunca tinha ido a um enterro. Interroguei-me se saberia comportar-me numa situação dessas. O meu coração pulou quando me lembrei que não tinha ido preparada para um funeral…que roupa havia de usar?
Na azáfama dos últimos dias em casa dos meus pais, consegui comprar alguns tecidos e fazer duas ou três fatiotas para aumentar o meu vestuário, que não era grande coisa. Até fiz um casaco bem à moda, em tecido xadrez, mas não tinha pensado que iria precisar de roupa para um funeral, embora isso fosse previsível… Bem me podia desculpar pelo facto de viver num clima muito quente onde o preto era pouco usado…
Estas preocupações desapareceram quando, ao passar outro furad, e depois uma curva acentuada, divisámos algumas luzes dispersas e alguém disse; chegámos ao Jardim!
A emoção foi tanta que todos os pêlos se me eriçaram e o meu corpo entrou em alerta máximo, todos os sentidos se aguçaram e o coração batia tão depressa que nem o sentia.
Passava da meia noite, a chuva miudinha molhava a calçada onde eu escorregava, e os saltos finos dos sapatos se encaixavam entre as pedras sobre as quais me equilibrava penosamente.  As duas primas que me tinham ido buscar ao aeroporto, divertidas com a minha dificuldade em andar, seguraram-me pelos braços de tal maneira que os meus pés quase não tocavam no chão e era como se flutuasse no ar.
Percebi que a aldeia era minúscula e a iluminação das ruas fraca. Os postes de luz das ruelas, muito afastados uns dos outros, apenas transmitiam uma luz baça e amarelada riscada pelas finas gotas de chuva.
Ao chegar à vereda que dava acesso à casa da minha avó, compreendi de que a minha chegada era um acontecimento para a aldeia. Desde o início deste trilho até à casa da minha avó, que agora parecia-me tão pequena, um gentio se acotovelava abrindo alas à minha passagem.
Desejei que a terra me engolisse, ficar invisível, mas ao invés, usei o meu velho truque: quanto mais insegura ou amedrontada me sentia, mais me mostrava firme e agia de um modo que parecia natural e simples. Como uma rainha olhava à minha volta e sorria para todos, isso resultava sempre, e lá, bem no fundo, desfrutava o meu momento de protagonismo.
Como se não bastasse ir ao encontro da minha avó falecida, à espera num caixão aberto, tinha que enfrentar todos aqueles olhares curiosos e sorridentes “olá, eu sou a … sou tua prima. Olá, eu também sou tua prima, conheces-me? Lembras-te de mim?
 Era mesmo assim, ali todos eram primos, e aquele momento parecia tudo menos um velório.
Entrei com alguma dificuldade no pequeno quarto de paredes caiadas e tecto alto revestido de madeira, nas cadeiras encostadas à parede sentavam-se as pessoas mais velhas ou aquelas que eram consideradas importantes, os restantes estavam de pé à volta do ataúde ocupando todo o quarto e à medida que eu passava iam-se afastando, abrindo uma clareira que deixava à mostra o pequeno caixão no centro da sala. Percebi que todos estavam curiosos para ver a minha reacção, mas eu mesma não sabia qual seria.
Um caixão simples de madeira leve, revestido com tecido preto e dentro dele, um corpo franzino, um rosto pálido amarrotado pelos anos. Achei que devia derramar algumas lágrimas e esforcei-me para isso, embora o corpo que eu via naquela caixa negra me fizesse pensar apenas numa embalagem vazia. Chorei pela memória que tinha daquela mulher ao olhar para o seu rosto de cera e dei-lhe um beijo ao de leve. Não conseguia olhar para mais ninguém, sentia o murmúrio dos presentes, mas naquele instante, eu era uma ilha, o resto era mar que me rodeava.
A tia que havia de ser minha companheira durante a minha estadia na aldeia veio em meu socorro, consolando-me, tentou afastar-me, inutilmente, pois de um momento para o outro fiquei rodeada de pessoas que falavam todas ao mesmo tempo, me interpelavam, davam beijinhos e abraços, se apresentavam. Cada um queria saber tudo sobre os meus pais, os meus irmãos, o país…sobre mim. Pintaste o cabelo? Sempre o tiveste claro, mas…
Claro que não era o momento para falar do banho de água oxigenada que eu tinha feito algum tempo antes…
Quando a curiosidade ficou mais saciada e a noite já era madrugada muitos foram saindo, ficando apenas os filhos e familiares mais chegados a fazer companhia. De vez em quando, alguém começava a rezar e então ouvia-se um coro melancólico apenas interrompido por ais, fungos e assoadelas.
A minha tia, pessoa muito simples e bondosa, considerou que eu devia descansar um pouco depois de uma viagem tão longa e cheia de emoções, guiou-me até ao quarto onde eu iria passar a noite.
Era uma habitação grande, de paredes caiadas e piso de cimento, que estava atulhado com os móveis que tinham sido retirados da outra sala, para a poder transformar numa capela funerária. Estava dividido com um cortinado de flores desbotadas. Ao olhar para essa cortina tive um dejá vu…fui transportada para um outro quarto, muitos anos atrás, na terra que eu acabava de deixar, onde passei as primeiras noites sem a companhia da minha mãe.
Sentia-me extenuada depois de tantas emoções, mas demorei a adormecer. Ainda não conseguia arrumar as ideias e analisar tudo o que tinha acontecido, e os sons da noite, tão diferentes, distraíam-me. Era o cantar das águas que caiam das rochas e se derramavam nas levadas, o rumor do mar de inverno, a bravura das ondas que remexiam as pedras do fundo para depois lançar-se impetuosas e salgadas na praia, e cujo som ecoava na alta rocha reforçando o seu poder. Era o canto das cagarras, que eu nunca tinha escutado, aves nocturnas que, segundo os pescadores anunciavam com o seu grito estridente, “peixe p’ra amanhã, peixe p’ra amanhã…”
Tudo era tão estranho e natural ao mesmo tempo, estava tão cheia que me sentia vazia. Lembrei-me dos meus irmãos e dos meus pais, agora tão longe, e senti um aperto no peito. Começava a entender melhor o que sentiam aqueles que um dia tinham deixado a família e partido. Porém, era diferente, porque eu tinha voltado para o lugar de onde o meu coração nunca tinha saído.
O enterro foi uma cerimónia simples, sem choros ou grandes demonstrações de pesar. Era a lei da vida. O féretro foi transportado em ombros por alguns homens que percorreram rapidamente a centena de metros que separavam a igreja do cemitério. Um cemitério pequeno e florido, à beira do mar que parecia um jardim, apenas o cruzeiro que dividia os talhões e os altos ciprestes com o cheiro acre da maresia recordavam a finalidade daquele lugar. Muros baixos e brancos e uma porta de ferro, sempre aberta, convidavam a entrar quem passava e lembrava o destino final a que todos estamos condenados.
In: A Filha da Mãe- Os pedacinhos que faltavam

(A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)



domingo, 19 de abril de 2020

ESTE PLANETA NÃO É PARA VELHOS, de Maria Cecília Garcia















Nunca o tema da velhice  esteve tão actual como nos dias de hoje. Vivemos num paradoxo realmente paradoxal. Por um lado, a ciência esforça-se para aumentar a esperança de vida, por outro inventam-se toda a espécie de justificações para dar termo à vida dos mais idosos.
 E o paradoxo continua. Considera-se que um país é desenvolvido - esse é um dos parâmetros das estatísticas – o aumento da esperança de vida mas, imediatamente, tentamos livrar-nos deles, dos velhos.
Porém, os jovens esquecem que a vida é um sopro e, quando derem por isso, já estão nesta categoria.Este assunto dava muito pano para mangas (ou, nos dias de hoje, para máscaras, pois até o malvado vírus prefere os mais idosos), e para muita discussão.
 Aprova-se  a eutanásia. É por compaixão, dizem, para que as pessoas tenham direito a uma morte digna, para livrá-los do sofrimento.No que se refere à eutanásia, cada vez se quer ir mais longe, há quem pense que esta deveria ser aplicada a todos os que a desejassem, jovens ou velhos, sobretudo se estes forem considerados uma carga social.
 Porque a verdade é essa: trata-se de uma questão social, trata-se de dinheiro. Para que gastar tempo e dinheiro com uns seres inúteis, carregados de doenças e, na maioria dos casos, avariados da cabeça?
 Ninguém tem pena do sofrimento dos velhinhos, apenas se preocupam com o peso que estes possam causar ao Estado e até às famílias. Os velhos não produzem, são uma carga para a sociedade. A maior parte de países  ditos civilizados, esperam aprovar esta lei.
Não me vou estender neste tema, mas não me parece que ninguém tenha direito a matar, seja em que circunstância for. Mas esta é a minha opinião e não é por ignorância que falo.
 Penso que, talvez porque já esteja inserida no grupo dos velhos, mesmo que se diga que a escolha é do próprio, no fim, não será assim.
Deixem-me dizer-vos que os velhos sabem que vão morrer. Todos vamos morrer. Os mais velhos agradecem mais um ano vivido e , ao mesmo tempo entristecem, pois sabem que é m um ano menos para viver. E agarram-se à vida, aproveitam-na até ao último suspiro., sabendo que ela vai acabar, naturalmente.
Ainda existem países, menos desenvolvidos, claro está, na Ásia e na América do Sul, onde os velhos são vistos como depósito de sabedoria, onde o desrespeito por um ancião é muito mal visto, onde se valoriza a experiência, onde lhes é reconhecido o trabalho de toda uma vida. Digo "ainda" pois esta forma de pensamento tem tendência a desaparecer.
 O mundo actual parece não ser compatível com o mundo humano. Não num mundo onde a Economia é o mais importante. Curiosamente, as Ciências económicas tinham como princípio estudar uma forma de repartição justa, onde todos pudessem receber o necessário para a sua sobrevivência. Mas, em lugar de distribuir com equidade, o problema de escassez resolve-se de outra maneira: condenando à morte metade da humanidade para que a outra metade possa consumir em excesso.
O que me aflige mesmo, ainda que entenda todos estes pontos de vista, mesmo não concordando e sabendo que somos mais de oito mil milhões de seres neste planeta, o que me preocupa é: onde está a humanidade, onde está o amor? Onde está a compaixão pélo outro, a começar no seio familiar?
Onde está o amor e gratidão aos progenitores, aos que deram a vida, e ainda mais se fosse possível, para proteger os seus filhos, para que nada lhes faltasse. Os que educaram e transmitiram o seu amor e os seus princípios, pensando apenas no  bem dos filhos.
Aqueles que podiam dar um castigo, mas logo davam um beijo ou um abraço. Os que perdoavam tudo. Os que vigiavam o sono e se aproximavam para ouvir a sua respiração e, só então,  iam deitar-se  para  dormir um sono leve e atento.
Os pais que tremiam quando os seus meninos tinham febre, dores de garganta ou um pesadelo. Aqueles que tudo faziam, sem pensar em si próprios, para que estes pudessem ter uma vida melhor do que a que eles tiveram . Os que rejubilavam com cada triunfo, mesmo que ninguém lhes agradecesse e, desde um canto discreto, derramavam lágrimas de felicidade.
Estes velhos não precisam de compaixão pélo seu sofrimento. Eles precisam sentir o amor no coração dos filhos, ao menos dos filhos, não o desejo de os ver partir porque já passaram o prazo de validade. Darão um bocadinho de trabalho, sim.E nós em crianças, não demos tantas preocupações?

Eles sabem que vão partir, eles só precisam saber que são amados para acalmar as suas dores e  ter a certeza de  que a sua vida fez sentido.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

A MENINA DAS CINZAS, de Anita Dos Santos















Penso muitas vezes nos meninos que foram obrigados a subir a chaminés, e em quantos assim morreram queimados. Crianças anónimas, sem nome e das quais ninguém dava por falta.
Crianças, algumas vendidas para esse mesmo fim. O mesmo se passava com os meninos que tinham de limpar as lareiras nas primeiras horas da madrugada.
Uma pequena e singela lembrança.

A MENINA DAS CINZAS

Os dias começavam sempre muito cedo.
Quatro e meia, cinco horas da manhã era sempre a altura em que a velha criada encarregada das cozinhas acordava as pequenas ajudantes, quer as suas, quer as restantes da casa.
Arrancar-se da enxerga era sempre um custo, todos os dias cada vez mais. Quando por fim conseguia chegar à copa, à ala reservada aos criados, fazia o possível para que ninguém reparasse nela. Não que isso fosse difícil, era tão pequena e franzina… Tinha sorte nos dias em que conseguia deitar a mão a um pouco de pão e escondê-lo no bolso do avental, podia assim ir comendo longe da vista dos restantes criados, alguns dos quais lhe tirariam de imediato aquela pequena côdea, se dessem por ela.
Para aqueles que se levantavam cedo na madrugada para fazer o serviço que lhes estava destinado, os criados invisíveis, pouco havia para comer, e aquilo que conseguiam arranjar era disputado entre os mais fortes.
Ela, era uma criança pequena e franzina, encarregada de despejar e limpar as cinzas das lareiras. Estava no fim de todos eles.
Naquele dia, lá foi com o seu naco de pão escondido no bolso, em busca do balde de ferro para recolher as cinzas da grande lareira do salão.
Empurrou a porta com cuidado, não fosse dar-se o caso de ainda estar alguém no interior, e espreitou. Vazio. Pegou a asa do balde com as duas mãos e foi direita à enorme lareira.
Era sempre um espanto enorme olhar para a imensidão que aquela lareira tinha. “Deve ser bom dormir assim quentinha, ao pé de uma lareira tão grande quanto esta”, pensou enquanto começava a retirar as cinzas com a pá e a colocá-las dentro do balde.
Enquanto pensava que teria de fazer pelo menos duas viagens para esvaziar a lareira, começou a notar uma luz branca vinda do lado das janelas. Voltou-se hesitante, sem saber se estaria já atrasada e o dia estaria já a nascer.
Rente à janela e a pairar acima do chão, encontrava-se uma figura resplandecente, que a encarava com amor e carinho.
Recuou assustada, acabando por cair sentada.
- Não tenhas receio. Estou aqui para velar por ti, para te acompanhar. A tua provação está prestes a findar, criança.
- Então não vou mais ter de apanhar cinzas, que arrastar baldes pesados e passar fome?
- Não, criança. Já sofreste demais para tão poucos anos de vida, para um corpo tão pequeno, para alguém tão sem carinho e tão sem amor. Está na hora de descansar.
- Descansar era bom… Mas a encarregada das crianças não nos deixa descansar… Deixas-me ao menos comer a minha côdea de pão?
As lágrimas brilharam na face daquele que tinha vindo por aquela vida tão jovem e tão sofrida.
- Claro que sim, criança. Podes desfrutar do teu pão em paz. Vais ter todo o pão que quiseres, todo o carinho e amor que uma criança deve ter, no sítio para onde te vou levar.
- Verdade? – A voz arrastava-se à medida que o pão desaparecia, calmamente.
Por fim, suspirou, feliz por ter terminado, cansada da sua curta e difícil vida.
Encostou-se ao balde das cinzas e cruzou as mãos gretadas e cinzentas no colo.
O Anjo, debruçou-se sobre ela, e tomou-a ao colo levando-a.
Quando o dia raiou, o mordomo encontrou a menina das cinzas morta, junto da lareira, com um sorriso no rosto.

Anita dos Santos

sábado, 11 de abril de 2020

DESIGUALDADES, de Fernando Teixeira















Existe um cartoon que procura ilustrar a diferença entre os conceitos de igualdade e equidade, em que um homem, um adolescente e uma criança, ainda pequenote, tentam ver um jogo de baseball por cima de uma vedação de tábuas. Numa situação de igualdade, cada um recorre a um caixote de madeira para conseguir alcançar a visão do recinto desportivo. Os dois mais altos conseguem-no com esse recurso, se bem que o adulto até não precisasse dele, porém a criança nem com a ajuda do caixote consegue ver sobre a vedação. Para conseguir uma posição de equidade entre todos, o homem desce do seu caixote e cede-o ao pequenote que, sobre esse em cima daquele que já tinha, lhe possibilita ficar com a cabeça ao nível da dos restantes e acima do topo da vedação, permitindo que os três possam, então, observar igualmente o jogo. Objectivo do cartoon: demonstrar que, muitas vezes, a equidade de oportunidades, no recto, natural e justo reconhecimento dos direitos de cada um, é bem mais importante para que todos consigam alcançar determinado objectivo do que uma simples igualdade de direitos, tantas vezes apregoada.
Vem isto a propósito da constatação de que nem todos os povos vivem em equidade, traduzindo-se isso em crescentes desigualdades no mundo. Seja por questões geográficas, históricas, ambientais, culturais, técnicas ou científicas, mais parece que não vivemos num mesmo planeta, mas em mundos distintos. E com o passar das décadas, século após século, essas diferenças e desigualdades têm-se acentuado, levando a que os extremos se afastem cada vez mais e que uma ideia de equidade entre os povos seja só uma miragem num deserto de ideias, apenas povoado pela ganância do lucro e do poder em que se alicerça o progresso.
Numa óptica mais restritiva, nem mesmo os cidadãos de um país dispõem de igualdade de oportunidades, seja pelo extracto social, formação académica, condição profissional e económica ou, simplesmente, pelas intrínsecas características da sua pessoa. Porém, é do plano mais global que me quero ocupar nesta crónica.
Enquanto o mundo das telecomunicações já se ocupa da tecnologia 5G, muitos seres humanos desejariam ter cinco tigelas de arroz, ou de farinha, para poder alimentar as suas famílias; enquanto muitos vivem num luxo desmesurado, outros vivem em condições infra-humanas; enquanto alguns ganham salários obscenos e acumulam fortunas que nunca gastarão na vida, outros nada têm. E, nesta esfera azul, ínfimo ponto vagueando no espaço, com uma população rapidamente a caminho dos 8 mil milhões de pessoas, tudo continua como se esta disparidade não existisse, e alegremente, ou não, vamos vivendo e assistindo a estas desigualdades e à criação de um fosso maior entre ricos e pobres, poderosos e indefesos, elites e plebe, promovendo divisões, ressentimentos e ódios. Parte do mundo estagna enquanto outra parte pula e avança, nas palavras de António Gedeão, sendo que, na primeira, às crianças não lhes é permitido ter nas mãos uma bola colorida, talvez somente pedras nada filosofais.
Enquanto pulamos e avançamos, confortados no bem-estar do nosso progresso e desenvolvimento, necessário e louvável, esquecemos que nunca se conseguirá caminhar na direcção da harmonia entre os povos, se não se atenuar a desigualdade de oportunidades, ainda que respeitando as diferenças e, principalmente, pacificando as regiões onde ainda grassam ódios. Só assim, poderão todos esses povos vislumbrar uma vida digna, por cima e além da vedação das suas limitações naturais ou impostas, e usufruir dela. Ao invés, quem dirige os destinos deste mundo anda entretido em fomentar guerras militares e comerciais, e crises económicas com graves repercussões sociais, apenas para assegurar mais riqueza e poder, ainda que à custa da criação de barreiras, fronteiras e muros, como se não bastassem as barreiras das ideologias políticas, morais e religiosas para impedir a pacificação e o progresso das zonas do globo mais desfavorecidas. Infelizmente, isso não diminui o caos que se vai crescentemente instalando no mundo actual. Até quando?

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)


domingo, 5 de abril de 2020

MENOPAUSA ENTALADA, de Maria Cecília Garcia















Era um velho sonho familiar realizar uma viagem, sem destino, em uma autocaravana. Na viragem do século, ano 2000, todos os sonhos pareciam querer concretizar-se, quando uma tarde, estacionou à porta de casa uma reluzente autocaravana, novinha em folha. A emoção de pais e filhos era digna de ver-se. A viagem já estava planejada há algum tempo mas trabalhamos toda a noite metendo bagagens e tudo quanto achamos necessário para uma viagem confortável: lençóis, mantas, almofadas- o meu filho levava a sua almofada de estimação, que não era mais do que uma tripa esborrachada de espuma do que outra coisa, e não podia ser lavada porque ele não suportava o cheiro a detergente, tinha mesmo que cheirar a baba curtida..

A minha filha levava o seu diário, o meu marido, tudo e mais alguma coisa, que nestas coisas ele era muito precavido. Eu tratei da mercearia e de cortar aquela loucura toda, se não me cuidasse daí a pouco não cabia ninguém naquela viatura. Ah! Não podiam faltar as máquinas fotográficas, rolos- ainda eram de rolos – e uma faiscante máquina de filmar. Assim apetrechados, pela manhã bem cedinho, num luminoso dia de Agosto ansiosos e satisfeitos, arrancamos, iniciando assim a nossa viagem.

Mas todos sabiam que era uma viagem de risco, (todos menos eu) eu estava na menopausa… e eles já tinham sentido os efeitos dessa condição. Não que me afectasse particularmente, sentia-me bem, nada de calores ou qualquer outra coisa, fisicamente tudo estava normal. Para mim, mas para meu marido e os miúdos, parece que não. Segundo diziam, eu estava diferente, andava raivosa, enfurecia-me facilmente, eu que normalmente era calma, até permissiva, diziam eles que eu andava sempre com o chicote na mão. Eu não dava por nada.
Eu fazia as vezes de co-piloto, calções, óculos escuros, corte de cabelo moderninho, muito curtinho e espetado e o mapa estendido à minha frente. Sentia-me uma turista experiente - não ia permitir que ninguém dissesse o contrário – estava decidida a levar a bom porto aquela expedição. Não me lembrei que sou daquelas pessoas que enjoam ao fixar a vista, para ler ou outra coisa qualquer, quando andam de carro…, mas não dei o braço a torcer. Era eu que tinha de estar sentada no cockpit…

Não entraríamos em Madrid, é uma cidade grande e com muito para ver, por isso ficaria para outra altura. O primeiro ponto de paragem seria Barcelona, onde ficaríamos dois dias, mas no roteiro da viagem estava França, mais uma vez deixamos Paris para outras núpcias, a tal coisa, cidade grande, muita coisa para ver… e Itália. Sem Roma, claro!

A vigem seria um esticão até Barcelona, havia comida e bebida a bordo, camas para descansar, casa de banho e fogão para o que fosse preciso. O meu filho, então com 11 anos, amante da fotografia, ia gastando rolo trás rolo, não parava até eu deixar o meu trono e retirar-lhe a máquina das mãos. A viagem ainda nem tinha começado…

Não sabíamos porquê era que cada vez que nos cruzávamos com outra autocaravana, eles tocavam a buzina, até percebermos que era uma espécie de código, as autocaravanas cumprimentavam-se uma às outras. Depois de saber isso, se o nosso condutor não respondesse ao cumprimento eu começava a ladrar.

- Não viste que era uma caravana! Mal-educado! Fogo, custa alguma coisa? Eu acho tão giro!
- Tenho mais o que fazer mulher! Larga-me da Mão, não vês que vou a conduzir?

Tomei para mim a incumbência, seria eu a responder ou melhor, seria a primeira a cumprimentar. Ansiava ver aparecer uma, quando via era eu que atacava o volante buzinando à força toda!

-Tu és maluca? Deixa que eu apito, pronto! Ainda temos um acidente por tua causa!

Mas eu era vigilante, logo que visualizava uma, olhava-o atravessado até ele apitar, enquanto eu acenava animadíssima e os outros viajantes também. Ficava danada quando saudava as caravanas com atrelado e elas não respondiam. Raios!

- De que país era a matrícula? -perguntava ao meu filho. Mas fosse qual fosse a nacionalidade, eles nunca respondiam. Chegamos à conclusão que cada categoria cumprimenta o seu igual, autocaravanas para autocaravanas, atrelados para atrelados…pronto, a partir de então só olhava para os nossos pares e deitava um olhar de desprezo para os outros. Afinal, são os parentes pobres.

O meu filho, atento às matrículas só dizia: Franceses, italianos, alemães…quanto à minha filha, dormia. Para ela a viagem era só quando chegava ao destino, é verdade que enjoava um bocadinho, mas estava mais ocupada pensando no namoradito que tinha deixado em Portugal e tentar apanhar o telemóvel do pai, que rosnava cada vez que ela tentava.

Saímos por Badajoz, e seguimos pela E90 até Madrid. Não devíamos entrar em Madrid, havia que ter muita atenção para não deixar a auto-estrada e entrar no eixo da E15 que ligava directo para Barcelona. Eu sabia. Sabia, mas, quando demos por isso estávamos em plena cidade, andando às voltas para encontrar a ligação para Barcelona. Não vimos Madrid, é verdade, mas que a rodeamos, rodeamos!

Eu nem olhava para o conductor, ele deitava fumo por todos os lados, mas devido à minha “condição” fazia um grande esforço para não explodir. Logo ele, que habitualmente era quem se irritava, quem se enfurecia e fazia calar todo mundo, levava agora uma dose do seu próprio veneno. Não se diga que a vida não é justa!

Claro que ao fim de algum tempo, não sei quanto, uma eternidade, encontramos a via adequada.

A viagem corria bem, sem percalços, em breve estaríamos em Montserrat. Um belíssimo maciço rochoso, a cinquenta quilómetros de Barcelona. Existe ali uma bela ermida e um Santuário que vale a pena visitar. Fiquei com a máquina de filmar da qual o meu filho tentava, em vão, apoderar-se. Era o que faltava! Eu sabia muito bem o que queria filmar, a paisagem era tão linda, e la estava eu, munida da dita apontando para tudo o que parecia interessante.

Eles queriam descer no funicular, ao longe era tão a pique, descia quase na vertical, tive vertigens…nem pensar! Ninguém se vai meter naquela caixa e deixar-se cair montanha abaixo!

A ideia do meu marido era que nos juntássemos às outras caravanas, nas estações de serviço, para não ter que pagar em parques de campismo, mas não foi possível. Eu não era capaz, tinha medo, de maneira que lá abrimos o catálogo de parques de campismo com espaço para caravanas como a nossa. Antes de entrar em Barcelona já sabíamos para onde devíamos ir.

O parque era bom, pertinho do mar, mas essa noite ninguém dormiu por causa de uma trovoada como eu nunca vi, tantos raios e trovões…a manhã estava molhada, chovia a cântaros,  a minha filha ficou a pavonear-se em bikini , na porta da caravana, e eu tive que fazer um almoço no mini fogão enquanto o meu marido tomava banho na mini casa de banho. O meu filho jogava com as cartas mágicas. O tempo melhorou, fomos para a cidade. Encontramos uns amigos que moravam lá, levaram-nos ao Corte Inglês. Não gostei, mas adorei Barcelona, as ramblas, fizemos um cruzeiro pelo porto… amei.

A cidade é linda. Tenho que lá voltar!

Deixamos Barcelona pelas vias da Costa Brava, rentinho ao Mar Mediterrâneo. Havia muito trânsito, dava para ver os banhistas na praia, deu para ver uma praia nudista, eram quase todos homens, jogando ténis, correndo na areia, dando ao badalo. Giros…

Ainda fomos a Figueres visitar o Museu Dali, ideia da minha filha. Mas gostamos todos desse espaço. Depois, a Costa Azul maravilhosa. Não posso fazer um roteiro turístico, mas digo que gastamos muitos rolos fotográficos e filmamos muito- nesta altura eu já tinha cedido a máquina de filmar, depois de descobrir que quando pendurava a câmara, vaidosamente, ao pescoço, supostamente desligada, na verdade não o estava e metade do filme era sobre a calçada e o movimento dos meus pés ao andar. Depois ficava sem bateria e não podíamos gravar as paisagens.

Passamos por Marselha, de onde avistamos a ilha de If, prisão do Conde de Monte-Cristo, Perpignan, pernoitamos em Fréjus, onde havia um arraial e nos juntamos a um grupo para ir à festa. Descobrimos que os franceses não se coíbem na hora de soltar gases, o que foi um alívio para o meu marido. Tomamos banho na praia de Saint Tropez …e por aí fora, sem esquecer Cannes, Nice, Mónaco.

A viagem continuo bem, mas eu ainda tinha humor de cão raivoso e desatava a chorar quando eles ameaçavam deixar-me à beira da estrada, e das dezenas de voltas dadas nas rotundas porque ele, o condutor, nunca via a tempo o meu sinal.

Deixamos a França e percebemos logo que tínhamos chegado à Itália, não só porque as pessoas falavam italiano, mas porque toda a beleza e a limpeza que vimos na Cote d’Azur, já não existia. As ruas sujas, os prédios abandonados e muitos personagens que nos faziam sentir dentro de um filme de Fellini ou Visconti. Eram mulheres peludas, gordos de barriga pendurada e papadas gigantes e olhares nojentos

… Sanremo…. Ali sim, insisti eu, tenho que tomar banho na praia de Sanremo! Mas, por mais que procurássemos, não dávamos com uma saída que nos levasse até à praia, não era possível que não houvesse uma se até podíamos ver os banhistas na areia. Voltas e mais voltas e nada…. Até que o meu marido gritou:

-Ali há uma saída! – Olhamos todos na direcção que ele apontava, animados, mas…

- Não te parece muito estreita?

- Não, dá perfeitamente, disse ele, já enfiando o carro.

-Olha, este não é o nosso Opel Corsa…. É uma caravana. Mas ele continuava enfrente entusiasmado, enquanto eu via que a rua se estreitava cada vez mais.

-Não vás!  Não vai caber …Ele virou à direita, andou uns centímetros, e parou. Não dava não. Estávamos completamente entalados. As portas laterais não se podiam abrir, e só havia portas laterais naquela carripana. O meu filho aproximou-se, esticou o pescoço e apontando com o dedo. Ao fundo, não muito longe, uma pequena ponte com um letreiro: Veículos até 2.50 metros.  A autocaravana tinha 3m50. E agora?

Entretanto o pessoal começava a sair da praia e detinha-se à nossa frente, nós não podíamos sair, nem aquelas pessoas, com cadeiras, toalhas, sacos e guarda-sóis conseguiam passar.
Era uma pequena multidão, todos a olhar para nós, eram risadas, braços no ar…

Tapei a cara com as mãos. O meu marido, calado nem olhava para ninguém, não sei o que se passava na cabeça dele, mas posso imaginar.

Meu Deus, que vergonha! Devem achar que os portugueses são idiotas!

O meu filho, sempre oportuno:

-Deixa lá mãe, pode ser que eles pensem que somos polacos, as matrículas são parecidas.

No meio daquele pesadelo ainda conseguiu fazer-nos rir.

A nossa sorte foi haver, alguns metros atrás, um armazém de pedras funerárias e outras, mármores, granitos. À porta estavam estátuas de anjinhos, livros, vasos, cruzes, e os bons homens arredaram tudo para o interior, abriram completamente os portões e, dando instruções detalhadas, guiaram o nosso chofer, ao milímetro, até a traseira da caravana entrar no depósito e poder fazer inversão de marcha. Assim saímos daquele entalanço. Creio que nem agradecemos aos homens, que riam a bandeiras despregadas.

-Agora já não paro em lugar nenhum até chegar a Génova! - Nem eu queria. Mas parou sim.

Alguns quilómetros depois, numa localidade chamada Bussana, arrancou o espelho lateral a um Volvo, por acaso estacionado encima do passeio. Olhamos um para o outro, estávamos pensando a mesma coisa, apetecia continuar andando, não ligar ao que tinha acontecido.

Já nos imaginávamos fugitivos Itália fora, com a polícia atrás, como bandidos. Era excitante, se não fossem os miúdos…. Parámos. A dona do carro já estava lá, nem parecia muito preocupada. O meu marido só queria saber quanto era, nada de chamar seguros ou polícia, precisamos seguir viagem e ainda havia muito pela frente.

- Quanto custa o espelho? -

- Devo parlare con mio marito - disse. O meu marido responde com um palavrão, baixinho.

- Ora chiamerò il mio meccanico – o mecânico chegou, conferenciaram, e no fim:

- Questo dovrebbe costare 400 mila lire …

…e lá foi o meu marido, à caixa multibanco levantar as 400 mila lire…que é como quem diz, 40 contos. Na altura ainda não havia euros.

Depois tudo correu bem, mesmo que tivéssemos ficado sem gasolina no alto dos Alpes e descido aquelas estradas com curvas e contracurvas deixando o carro ir embalado até Aix -les Bans. Mas eu cantei olarilolela hihi, saltitei nos prados verdes, apanhei florezinhas silvestres, senti-me a Heidi, aos pés do Mont Blanc.

E ainda nos enganamos e fomos parar à Suíça, onde, ao perceber que estávamos enganados ele fez inversão de marcha, bateu num poste com a bandeira desse país, que ficou todo torto e quase a bater na janela de uma casa. Mas aí não nos detivemos, fugimos como danados até sentir que já estávamos na França outra vez, e ainda assim…

De regresso fui despromovida. A minha filha era agora co-piloto. Chegamos a casa sem nos enganarmos nem uma vez. 


MC-2019