Penso
muitas vezes nos meninos que foram obrigados a subir a chaminés, e em quantos
assim morreram queimados. Crianças anónimas, sem nome e das quais ninguém dava
por falta.
Crianças,
algumas vendidas para esse mesmo fim. O mesmo se passava com os meninos que
tinham de limpar as lareiras nas primeiras horas da madrugada.
Uma
pequena e singela lembrança.
A
MENINA DAS CINZAS
Os dias
começavam sempre muito cedo.
Quatro e
meia, cinco horas da manhã era sempre a altura em que a velha criada
encarregada das cozinhas acordava as pequenas ajudantes, quer as suas, quer as
restantes da casa.
Arrancar-se
da enxerga era sempre um custo, todos os dias cada vez mais. Quando por fim
conseguia chegar à copa, à ala reservada aos criados, fazia o possível para que
ninguém reparasse nela. Não que isso fosse difícil, era tão pequena e franzina…
Tinha sorte nos dias em que conseguia deitar a mão a um pouco de pão e
escondê-lo no bolso do avental, podia assim ir comendo longe da vista dos
restantes criados, alguns dos quais lhe tirariam de imediato aquela pequena
côdea, se dessem por ela.
Para
aqueles que se levantavam cedo na madrugada para fazer o serviço que lhes
estava destinado, os criados invisíveis, pouco havia para comer, e aquilo que
conseguiam arranjar era disputado entre os mais fortes.
Ela, era
uma criança pequena e franzina, encarregada de despejar e limpar as cinzas das
lareiras. Estava no fim de todos eles.
Naquele
dia, lá foi com o seu naco de pão escondido no bolso, em busca do balde de ferro
para recolher as cinzas da grande lareira do salão.
Empurrou a
porta com cuidado, não fosse dar-se o caso de ainda estar alguém no interior, e
espreitou. Vazio. Pegou a asa do balde com as duas mãos e foi direita à enorme
lareira.
Era sempre
um espanto enorme olhar para a imensidão que aquela lareira tinha. “Deve ser
bom dormir assim quentinha, ao pé de uma lareira tão grande quanto esta”,
pensou enquanto começava a retirar as cinzas com a pá e a colocá-las dentro do
balde.
Enquanto
pensava que teria de fazer pelo menos duas viagens para esvaziar a lareira,
começou a notar uma luz branca vinda do lado das janelas. Voltou-se hesitante,
sem saber se estaria já atrasada e o dia estaria já a nascer.
Rente à
janela e a pairar acima do chão, encontrava-se uma figura resplandecente, que a
encarava com amor e carinho.
Recuou
assustada, acabando por cair sentada.
- Não
tenhas receio. Estou aqui para velar por ti, para te acompanhar. A tua provação
está prestes a findar, criança.
- Então
não vou mais ter de apanhar cinzas, que arrastar baldes pesados e passar fome?
- Não,
criança. Já sofreste demais para tão poucos anos de vida, para um corpo tão
pequeno, para alguém tão sem carinho e tão sem amor. Está na hora de descansar.
-
Descansar era bom… Mas a encarregada das crianças não nos deixa descansar…
Deixas-me ao menos comer a minha côdea de pão?
As
lágrimas brilharam na face daquele que tinha vindo por aquela vida tão jovem e
tão sofrida.
- Claro
que sim, criança. Podes desfrutar do teu pão em paz. Vais ter todo o pão que
quiseres, todo o carinho e amor que uma criança deve ter, no sítio para onde te
vou levar.
- Verdade?
– A voz arrastava-se à medida que o pão desaparecia, calmamente.
Por fim,
suspirou, feliz por ter terminado, cansada da sua curta e difícil vida.
Encostou-se
ao balde das cinzas e cruzou as mãos gretadas e cinzentas no colo.
O Anjo,
debruçou-se sobre ela, e tomou-a ao colo levando-a.
Quando o
dia raiou, o mordomo encontrou a menina das cinzas morta, junto da lareira, com
um sorriso no rosto.
Anita
dos Santos
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