Ainda tínhamos uma longa viagem pela frente antes de chegar à aldeia, percorrer os 69 km de estrada levaria mais de duas horas.
Naquela ilha, filha de um vulcão, de serras cortadas a pique, os caminhos subiam e desciam, contornavam as montanhas escarpadas, desciam vertiginosamente até ao nível do mar para poucos minutos depois estar novamente junto à serra e, através de íngremes estradas desciam, outra vez, enchendo os olhos com uma paisagem estonteante.
Uma ilha, com apenas meia centena de quilómetros de ponta a ponta, conseguia, através de sinuosas estradas, duplicar o seu tamanho.
Apenas enxergava as duas faixas de luz dos faróis do táxi verde e preto que iluminavam o caminho;, ao atravessar a cidade a profusa iluminação de Natal deslumbrou-me, mas imediatamente mergulhámos no negrume, encontrando apenas, aqui e acolá, as cintilações baças de uma aldeia que desaparecia rapidamente, como se fosse uma miragem, e era de novo o breu ao atravessar um furado, pequeno túnel escavado na rocha, assustador, estreito, de pedras húmidas, salientes, agressivas como a boca de um leão. Tudo me deslumbrava, mas só pensava em chegar. Enquanto não chegasse à aldeia não tinha chegado a casa, estava no caminho, na terra de ninguém. Os murmúrios das conversas no automóvel pareciam vir de longe, como um eco. Às perguntas que me faziam, eu respondia como um autómato, cega pela paisagem que não alcançava a ver mas tentava imaginar e as emoções que me assolavam.
Lembrei-me da minha avó, motivo desta viagem, e perguntei por ela.Partira na manhã desse dia, não esperou pela minha chegada, mas o seu corpo, vago e inerte, permanecia, para que eu a pudesse acompanhar até a sua última morada.
Sobressaltei-me. Constatei que nunca tinha ido a um enterro. Interroguei-me se saberia comportar-me numa situação dessas. O meu coração pulou quando me lembrei que não tinha ido preparada para um funeral…que roupa havia de usar?
Na azáfama dos últimos dias em casa dos meus pais, consegui comprar alguns tecidos e fazer duas ou três fatiotas para aumentar o meu vestuário, que não era grande coisa. Até fiz um casaco bem à moda, em tecido xadrez, mas não tinha pensado que iria precisar de roupa para um funeral, embora isso fosse previsível… Bem me podia desculpar pelo facto de viver num clima muito quente onde o preto era pouco usado…
Estas preocupações desapareceram quando, ao passar outro furad, e depois uma curva acentuada, divisámos algumas luzes dispersas e alguém disse; chegámos ao Jardim!
A emoção foi tanta que todos os pêlos se me eriçaram e o meu corpo entrou em alerta máximo, todos os sentidos se aguçaram e o coração batia tão depressa que nem o sentia.
Passava da meia noite, a chuva miudinha molhava a calçada onde eu escorregava, e os saltos finos dos sapatos se encaixavam entre as pedras sobre as quais me equilibrava penosamente. As duas primas que me tinham ido buscar ao aeroporto, divertidas com a minha dificuldade em andar, seguraram-me pelos braços de tal maneira que os meus pés quase não tocavam no chão e era como se flutuasse no ar.
Percebi que a aldeia era minúscula e a iluminação das ruas fraca. Os postes de luz das ruelas, muito afastados uns dos outros, apenas transmitiam uma luz baça e amarelada riscada pelas finas gotas de chuva.
Ao chegar à vereda que dava acesso à casa da minha avó, compreendi de que a minha chegada era um acontecimento para a aldeia. Desde o início deste trilho até à casa da minha avó, que agora parecia-me tão pequena, um gentio se acotovelava abrindo alas à minha passagem.
Desejei que a terra me engolisse, ficar invisível, mas ao invés, usei o meu velho truque: quanto mais insegura ou amedrontada me sentia, mais me mostrava firme e agia de um modo que parecia natural e simples. Como uma rainha olhava à minha volta e sorria para todos, isso resultava sempre, e lá, bem no fundo, desfrutava o meu momento de protagonismo.
Como se não bastasse ir ao encontro da minha avó falecida, à espera num caixão aberto, tinha que enfrentar todos aqueles olhares curiosos e sorridentes “olá, eu sou a … sou tua prima. Olá, eu também sou tua prima, conheces-me? Lembras-te de mim?
Era mesmo assim, ali todos eram primos, e aquele momento parecia tudo menos um velório.
Entrei com alguma dificuldade no pequeno quarto de paredes caiadas e tecto alto revestido de madeira, nas cadeiras encostadas à parede sentavam-se as pessoas mais velhas ou aquelas que eram consideradas importantes, os restantes estavam de pé à volta do ataúde ocupando todo o quarto e à medida que eu passava iam-se afastando, abrindo uma clareira que deixava à mostra o pequeno caixão no centro da sala. Percebi que todos estavam curiosos para ver a minha reacção, mas eu mesma não sabia qual seria.
Um caixão simples de madeira leve, revestido com tecido preto e dentro dele, um corpo franzino, um rosto pálido amarrotado pelos anos. Achei que devia derramar algumas lágrimas e esforcei-me para isso, embora o corpo que eu via naquela caixa negra me fizesse pensar apenas numa embalagem vazia. Chorei pela memória que tinha daquela mulher ao olhar para o seu rosto de cera e dei-lhe um beijo ao de leve. Não conseguia olhar para mais ninguém, sentia o murmúrio dos presentes, mas naquele instante, eu era uma ilha, o resto era mar que me rodeava.
A tia que havia de ser minha companheira durante a minha estadia na aldeia veio em meu socorro, consolando-me, tentou afastar-me, inutilmente, pois de um momento para o outro fiquei rodeada de pessoas que falavam todas ao mesmo tempo, me interpelavam, davam beijinhos e abraços, se apresentavam. Cada um queria saber tudo sobre os meus pais, os meus irmãos, o país…sobre mim. Pintaste o cabelo? Sempre o tiveste claro, mas…
Claro que não era o momento para falar do banho de água oxigenada que eu tinha feito algum tempo antes…
Quando a curiosidade ficou mais saciada e a noite já era madrugada muitos foram saindo, ficando apenas os filhos e familiares mais chegados a fazer companhia. De vez em quando, alguém começava a rezar e então ouvia-se um coro melancólico apenas interrompido por ais, fungos e assoadelas.
A minha tia, pessoa muito simples e bondosa, considerou que eu devia descansar um pouco depois de uma viagem tão longa e cheia de emoções, guiou-me até ao quarto onde eu iria passar a noite.
Era uma habitação grande, de paredes caiadas e piso de cimento, que estava atulhado com os móveis que tinham sido retirados da outra sala, para a poder transformar numa capela funerária. Estava dividido com um cortinado de flores desbotadas. Ao olhar para essa cortina tive um dejá vu…fui transportada para um outro quarto, muitos anos atrás, na terra que eu acabava de deixar, onde passei as primeiras noites sem a companhia da minha mãe.
Sentia-me extenuada depois de tantas emoções, mas demorei a adormecer. Ainda não conseguia arrumar as ideias e analisar tudo o que tinha acontecido, e os sons da noite, tão diferentes, distraíam-me. Era o cantar das águas que caiam das rochas e se derramavam nas levadas, o rumor do mar de inverno, a bravura das ondas que remexiam as pedras do fundo para depois lançar-se impetuosas e salgadas na praia, e cujo som ecoava na alta rocha reforçando o seu poder. Era o canto das cagarras, que eu nunca tinha escutado, aves nocturnas que, segundo os pescadores anunciavam com o seu grito estridente, “peixe p’ra amanhã, peixe p’ra amanhã…”
Tudo era tão estranho e natural ao mesmo tempo, estava tão cheia que me sentia vazia. Lembrei-me dos meus irmãos e dos meus pais, agora tão longe, e senti um aperto no peito. Começava a entender melhor o que sentiam aqueles que um dia tinham deixado a família e partido. Porém, era diferente, porque eu tinha voltado para o lugar de onde o meu coração nunca tinha saído.
O enterro foi uma cerimónia simples, sem choros ou grandes demonstrações de pesar. Era a lei da vida. O féretro foi transportado em ombros por alguns homens que percorreram rapidamente a centena de metros que separavam a igreja do cemitério. Um cemitério pequeno e florido, à beira do mar que parecia um jardim, apenas o cruzeiro que dividia os talhões e os altos ciprestes com o cheiro acre da maresia recordavam a finalidade daquele lugar. Muros baixos e brancos e uma porta de ferro, sempre aberta, convidavam a entrar quem passava e lembrava o destino final a que todos estamos condenados.
In: A Filha da Mãe- Os pedacinhos que faltavam
(A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
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