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sábado, 23 de maio de 2020

CRÓNICA | O REGRESSO, de Fernando Teixeira


Texto: Fernando Teixeira
Foto do Autor: D.R.


Voltava lá, muitos anos depois. Por sua mea-culpa, décadas mesmo, talvez três, já não sabia precisar. Só sabia que esse muito tempo lhe fizera renascer a vontade de lá voltar. Nesse regresso, pretendia redescobrir cenários que pertenciam ao seu passado, rever lugares que haviam feito parte de uma parte da sua vida e dar-se à oportunidade de reavivar sensações arquivadas no recôndito da memória e do coração. Por muito tempo que tivesse passado, essas imagens e sensações permaneciam indeléveis e, estando ele então a poucas dezenas de quilómetros de distância, de férias, aquela vontade tornou-se urgência.

Enquanto conduz o que falta para o destino, aquele homem de meia-idade regressa à sua infância e adolescência. Os olhos fixam o asfalto da estrada, mas pela tela da sua mente passam imagens de uma casa de pedra e dos espaços envolventes, adicionam-se sons e cheiros, memórias de momentos de brincadeira e de alegria, de inocente descoberta do campo, longe da cidade. Contudo, afloram-lhe também resquícios de introspecção, recordações de temores vários, de sons assustadores, da noite e de sítios cuja escuridão o fazia correr para o conforto e a segurança da casa, onde havia luz de velas, ou de candeeiros a petróleo, e gente.

Em tempos idos, uma viagem tremenda: de autocarro desde Lisboa até ao Porto, durante a noite, seguida de outra em comboio a vapor, partindo de Campanhã ao início da alvorada, depois um trajecto em automotora movida a diesel até à sede do concelho, para terminar num troço final em novo autocarro, por estradas de curva e contracurva que conduziam invariavelmente a um incómodo enjoo. Sorriu ao pensar como essa morosidade e consequentes dificuldades podiam, nos dias de hoje, ser facilmente substituídas por uma cómoda viagem de cinco horas em viatura própria, quase toda por auto-estrada até poucos quilómetros dessa aldeia do Minho profundo, que nem aldeia será, apenas um lugar.

Aquelas férias não podiam excluir esse encontro com o passado.

De repente, as imagens da memória tornam-se vivas. Primeiro, a ponte. Sim, lembra-se dela, lembra-se de a ponte ser assim, com aqueles arcos de pedra branca e gradeamento de ferro, lembra-se agora mais nitidamente. E sabe que, dentro de um par de quilómetros, encontrará um desvio à direita, após a placa com o nome da terra dos avós. As recordações agitam-se-lhe nos olhos, que ameaçam humedecer. Quase em simultâneo, materializam-se a paragem onde apanhava o autocarro para ir à vila mais próxima, que outrora fazia a carreira apenas duas vezes por dia, a placa toponímica branca da saudade e o ansiado desvio, a curva apertada que guarda na mente. O coração sobressalta-se-lhe de expectativa e emoção.

Duzentos metros em ligeira subida e novos fotogramas de infância e adolescência: o enorme tanque rectangular de pedra, onde as mulheres lavavam a roupa, lembra-se bem dele, e dali um caminho que costumava calcorrear quando por ali passava umas temporadas. Subindo a estreita estrada mais algumas dezenas de metros, eis finalmente a antiga casa dos avós paternos, agora fechada. Chegou ao destino da sua viagem e, demoradamente, percorre a envolvente da habitação, recuperando memórias, identificando locais que não havia esquecido: a entrada da casa, o lagar na cave, o lugar da capoeira, o espaço da pocilga que se transpunha por um conjunto de tábuas a fim de passar para um carreiro do outro lado, os muros de pedra com musgo, os caminhos de terra de um castanho intenso, os degraus que transpõem os socalcos de terreno, as árvores em volta. Aquele homem, embevecido, procura um espaço estreito entre edificações ao longo do qual costumava correr uma linha de água cristalina e por onde, criança, ousava descer um desnível de três metros por umas pedras incrustadas no muro da casa, sem qualquer corrimão onde se agarrar. Agora, na meia-idade, já não o fará, sente que é perigoso e sabe que lhe falta a intrepidez dessa criança que foi.

Enche o peito daquele ar que só se respira ali, inundando-se de odores que lhe são queridos, uma mistura de cheiros a campos de milho, vinhas, feno e mosto de vinho verde impregnado no granito ancestral. Falta-lhe o som da água borbulhando na pequena levada, seca pelo estio, mas parece-lhe ainda ouvir o chiar agonizante dos eixos dos carros das juntas de bois que o atemorizava em miúdo.
O desejo está cumprido e a vontade saciada. A noite aproxima-se.

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)











sexta-feira, 22 de maio de 2020

DIVULGAÇÃO LITERÁRIA | " Um verão especial", de Elin Hilderbrand em lançamento pelo Círculo de Leitores | CÍRCULO DE LEITORES


Texto & Foto: Grupo Bertrand-Círculo


– Um Verão Especial leva os leitores a uma das épocas mais tumultuosas dos Estados Unidos da América no século XX.

Acabado de chegar a Portugal – e em exclusivo – pelo Círculo de Leitores, o novo livro de Elin Hilderbrand expõe as convulsões de uma nação no período determinante para a sua história.

Em 1969, decorre a guerra do Vietname, luta-se pelos direitos civis, celebra-se a alunagem, decorre o gigantesco festival de Woodstock, discute-se sobre o mediático acidente de Chappaquiddick e assiste-se à tomada de posse de Richard Nixon. Neste cenário, a autora conta a história da família Levin que vive autênticos tempos de mudança e de enormes interrogações, enquanto se adapta e luta por acompanhar entender o estado da nação, por lidar com os seus segredos mais profundos e com o relacionamento frágil entre pais,filhos e avós.

Elin Hilderbrand narra a difícil realidade desta família, que ilustra a de tantas outras neste período conturbado em Nantucket e um pouco por todo o país no verão quente da última década de sessenta.

Sinopse:

Estamos em 1969 e os Levin vivem tempos de mudança. Todos os anos a família ansiava por passar o verão na casa da avó, na Baixa de Nantucket; no entanto, como em tantas outras coisas na América, este ano tudo será diferente. Blair, a irmã mais velha, vê-se presa em Boston, grávida de gémeos e incapaz de viajar; Kirby é apanhada no meio do vórtice de protestos pelos direitos civis; Tiger, soldado de infantaria, foi enviado para o Vietname; e Jessie, com 13 anos, sente se subitamente filha única e isolada naquela casa habitada pelos segredos da avó e da mãe. Enquanto o verão aquece, o Homem chega à Lua, realiza-se o Festival de Woodstock, o senador Ted Kennedy sofre um polémico acidente de automóvel e Jessie e a sua família vivem as suas próprias convulsões dramáticas, tal como o resto da nação.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

DIVULGAÇÃO LITERÁRIA | " D. Manuel I - Duas irmãs para um Rei", de Isabel Stilwell | PLANETA


Texto: Redacção com Editorial Planeta

Foto: Editorial Planeta Direitos Reservados


Isabel Stilwell, a autora de romances históricos mais vendida em Portugal, traz-nos a empolgante história do rei D. Manuel I e de duas das suas mulheres, Isabel e Maria, filhas de Isabel e Fernando, os poderosos Reis Católicos de Castela e Aragão, com o livro «D. Manuel I – Duas Irmãs para um Rei». Chega às livrarias no dia 2 de Junho.

O novo romance de Isabel Stilwell é dedicado ao rei D. Manuel I e centrado na época de ouro dos Descobrimentos portugueses. Durante o seu reinado, D. Manuel construiu um império que foi da Índia ao Brasil. Uma época fascinante, em que Lisboa se enche de espiões, mercadores, especiarias e riquezas. Apesar de no seu nono romance ter escolhido como protagonista um homem, ao contrário dos anteriores, onde elegeu sempre rainhas, Isabel Stilwell conta-nos a história deste rei através das mulheres que marcaram a sua vida. Desde a sua irmã Leonor, casada com o poderoso D. João II, à mãe, a forte duquesa de Beja e Viseu, até às suas duas mulheres Isabel e Maria, filhas de Isabel e Fernando, os Reis Católicos de Castela e Aragão.

«D. Manuel I – Duas Irmãs para um Rei» será publicado no mercado espanhol, editado pela Planeta de Libros, Espanha, em 2021. 


CRÓNICA | ANIMAIS, de Mafalda Pascoal


Texto: Mafalda Pascoal
Foto da Autora: D.R.


Hoje vou explanar sobre 2 animais irracionais.
Existem excepções à regra, existem sempre...
Começo por falar do Cão. Este animal que nos ama incondicionalmente. Mesmo depois de o repreendermos ou maltratarmos, ele vem sempre amoroso para a pessoa que foi a fonte desses maus tratos. Não é porque o animal possa ser estúpido mas, porque ele entende e compreende os defeitos humanos, ele é leal, ama-nos incondicionalmente e está sempre ao nosso serviço...para o cão não importa a casa que ele tem, a riqueza, as roupas ou os brinquedos de melhor ou menor qualidade. O mais importante é o carinho que lhes podemos oferecer, a atenção e o tempo em que podemos brincar com eles. Eles ensinam-nos com pouco, que o simples renova a alma e que devemos encontrar a melhor versão de nós próprios.
Além dos benefícios já comprovados por todos aqueles que convivem diariamente com os cães, a ciência também nos mostra mais sobre esse lado. Existem vários hospitais, que colocam cães a acompanhar os doentes que ficam mais felizes por esse acompanhamento, contribuindo diretamente para a cura.
Muito mais que a ciência e os donos que convivem diariamente com os cães, o espiritualismo reconhece os poderes que os cães possuem. Algumas vertentes afirmam que eles absorvem energias do ambiente e das pessoas que estão sempre ao redor. Isso significa que quando estão tristes ou desmotivados, provavelmente é por estarem sobrecarregados.
Para ajudá-los, basta fazer muito carinho e colocá-los em contacto com água, plantas e elementos que sejam naturais.
Passo agora a falar do Gato. Muitas pessoas julgam os gatos como animais preguiçosos e individualistas, mas este animal possui fortes poderes de espiritualidade, que colaboram para atrair boas energias para seus donos e ambientes. Os gatos são animais sensitivos, capazes de absorver toda energia negativa que carregamos ou que está presente no ambiente em que vive. Ele elimina-as enquanto dorme, por isso, quando há muitas pessoas numa casa e apenas um gato, ele fica muito “carregado”. Ás vezes é possível que ele não consiga eliminar toda essa negatividade, que tende a transformar-se em gordura, tornado-os obesos.
Quando estamos com algum problema no nosso corpo eles são capazes de sentir. Então, deitam-se sob a parte do corpo que está prejudicada, sugam toda energia negativa que ali está. Se eles se deitam e logo se levantam é porque sentiram que já conseguiram eliminar o problema e recolhem-se para descansar. Os gatos têm o poder de transformar energia negativa em energia positiva.
Apesar de muitas pessoas dizerem que os gatos são apegados à casa e não às pessoas, fiquem a saber que eles são verdadeiros protectores dos seus donos. Quando vamos dormir, por exemplo, eles ficam na nossa cama que é para afastar cargas negativas que nos sejam prejudiciais. Por isso, se sentirem que estamos bem, eles não dormirão conosco. Se vier alguém visitar-nos mas que seja uma pessoa que nos queira menos bem, o gato ficará à nossa volta para nos proteger, evitando que mal algum nos atinja.
Os gatos “vêm” o nosso lado interior, são capazes de perceber os nossos sentimentos e verdadeiras intenções. Se lhe dermos carinho com má intenção, ele percebe e afasta-se. Nós não sabemos interpretar os gatos mas os gatos sabem interpretar-nos. Eles sentem a desarmonia, solidão, stress e tentam actuar para amenizar esses conflitos.
Os gatos, por serem autónomos e terem uma forte personalidade, muitas vezes são julgados por serem egoístas e individualistas, mas, pelo contrário, são muito companheiros e fiéis. Se observarmos melhor o comportamento dos gatos, podemos aprender algumas coisas com eles, como por exemplo a exercitar todos os músculos, aproveitar a hora do sono para relaxar completamente o corpo e ser dedicado e dar carinho ao próximo. Sempre que um gato mostrar alguma agressividade, isso pode estar relacionado com a carga negativa no ambiente, pois o estado normal do gato não é ser agressivo e, se ele fica assim, está a “dizer-nos” que não consegue dar conta do recado sózinho.
Por todas estas razões e muitas outras não mencionadas, tratem os animais com respeito.
Mesmo que não vos faça sentido o que acabaram de ler, é importante para cada um de nós e em última análise para o planeta, que tratemos os animais com respeito, afinal, são seres vivos como nós, coabitam conosco, respiram o mesmo oxigénio que nós... se os animais tivessem menos importância do que o ser humano, simplesmente não existiriam aqui, no planeta... pensem nisso.
A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

CRÓNICA | MONTALBAN, de Maria Cecília


Texto: Maria Cecília Garcia
Foto da Autora: D.R.

Montalban era uma pequena vila encaixada entre montanhas, onde às onze horas da noite o gerador da luz eléctrica era desligado e um nevoeiro fantasmagórico rodeava a população. Apesar de estar entre montanhas, não era fria, antes pelo contrário, o clima era húmido e abafado.
Era uma localidade antiga, as casas eram baixas, quase todas com pátio interior e paredes de cana e barro, o edifício que se destacava era a igreja e depois a alcaldía.
Curiosamente, nesta povoação isolada nas montanhas, existiam três igrejas, cada uma dedicada a um padroeiro diferente. A minha mãe achou bem, significava que as pessoas eram devotas.
Não sei como fomos parar a este lugar, assim como não sei qual era o critério para a escolha dos diferentes lugares onde fomos morar, mas penso que seria uma certa proximidade do sítio onde meu pai estava a trabalhar, de modo a permitir que ele viesse a casa durante alguns fins-de-semana. Quando lá chegámos ainda não tínhamos casa para morar, foi preciso procurar alguma que estivesse vaga. Não foi difícil, rapidamente nos deram a indicação de uma, a única que estava para alugar.
 Fomos conhecer a casa e ficámos surpreendidos, era uma habitação diferente, bastante nova e mais elegante do que as demais. E estava situada numa rua bastante sossegada, embora próxima do centro.
Era uma das poucas que tinha telhado de telhas e, apesar de ter só um piso, era grande e tinha um terreno nas traseiras.
 Mas o seu interior parecia estar inacabado e tinha muitas cicatrizes no chão e nalgumas paredes. Os seis quartos distribuíam-se lateralmente, formando dois corredores, no meio dos quais se encontrava a sala com uma grande janela e a cozinha.
 Os quartos eram contíguos e comunicavam entre si por uma abertura onde devia haver portas, mas estas não existiam, e cada um dos cubículos tinha também uma porta para o corredor.
Era uma distribuição algo bizarra. Dos quartos do lado esquerdo, apenas aquele que dava para a rua, tinha janela, o que tornava os demais algo escuros; nos quartos da direita apenas um deles tinha uma janela que dava para o terreno e em todas as janelas havia grades de ferro. A sala tinha uma janela maior, também protegida por grades de ferro e portadas de madeira.
A única divisão que parecia estar completamente acabada era a sala de banho, que era também muito estranha. As paredes estavam recobertas por azulejos grandes, pretos e brilhantes, os vizinhos asseguravam que eram de mármore de Carrara, mas não tinha janela, estava sempre muito escuro e, mesmo com a luz acesa, tinha um ar algo sinistro.
As louças eram pretas, incluindo a banheira, o que também era uma raridade, pois o usual naquele país era as casas de banho terem apenas um duche. Tinha um grande espelho que ocupava quase toda a parede junto ao lavatório, cujas torneiras eram douradas.
O terreno das traseiras estava descuidado, como votado ao abandono, há muito tempo, coberto de ervas altas e alguns arbustos.
Nas traseiras, encostado à casa havia um grande barracão, que a minha mãe pensou que podia ter alguma utilidade para a criação de galinhas, e ainda outro, mais pequeno, cheio de coisas inúteis, algumas ferramentas, sacos de cimento endurecido. Parecia que alguém tinha atirado para lá tudo isso e saído a toda pressa.
Habituados como estávamos a viver em todo o tipo de casas, achámos que aquela estava bem e, quando a minha mãe soube o preço do aluguer, não pensou duas vezes, até porque nem foi pedida uma caução, como era uso.
Mas tinha um senão, a pessoa que a alugou fez questão de informar que aquela casa tinha fama de estar assombrada e que os inquilinos não paravam lá.
A minha mãe, que não acreditava nessas coisas, riu-se, e nós rimos com ela, mas, pelo sim, pelo não, foi falar com o padre, que confirmou essa informação.
A minha mãe achou que ele era tonto, mas pediu-lhe que fosse benzer a casa e, embora ele a informasse de que já tinha feito esse trabalho várias vezes, para outros inquilinos, sem resultado, ela insistiu.
Com a casa aspergida com água benta e um grande crucifixo na parede, entramos com a maior das confianças na nossa casa, talvez assombrada.
Tenho que admitir que me custa um pouco falar sobre as coisas que aconteciam ali, não porque acredite em fantasmas, espíritos ou assombrações, mas porque pode parecer invenção minha. Mas juro que tudo o que vou contar aconteceu!
Apesar dos avisos e dos prognósticos das vizinhas que apostavam que não ficaríamos lá muito tempo, fomos viver para aquela moradia.
A minha mãe lamentava que as pessoas fossem tão supersticiosas e sugestionáveis, pois para ela não havia que ter medo se estávamos com Deus porque ninguém era mais forte do que Ele.
Além das histórias que nos tinham contado, em que não acreditámos, havia uma circunstância bastante aborrecida, que era o facto da luz eléctrica que, além de ser desligada às onze horas da noite, não tinha a potência necessária para fazer funcionar a televisão em boas condições.
Recordo que eu andava todo o tempo mudando a televisão de lugar para ver se encontrava um ponto onde a recepção fosse melhor, ou rodando a antena até conseguir que aparecesse uma imagem distorcida e chuvosa, algumas vezes sem som e outras apenas com som, sem imagem!
Pelo seu lado, a minha mãe aumentou a sua criação de galinhas brancas e boas poedeiras, no barracão das traseiras transformado agora em galinheiro, e até arriscou a criar uns coelhos.
Com naturalidade habituámo-nos ao facto de encontrar todas as manhãs o chão da sala molhado e coberto com uma camada de salitre, sem nunca conseguirmos perceber de onde vinha aquela água.
Era, com certeza, alguma infiltração, no entanto, segundo a vizinhança assegurava, a casa já tinha sido esburacada à procura de algum cano roto ou uma nascente, mas nunca se encontrara nada que justificasse aquela humidade. Essa era a razão das cicatrizes nas paredes e no chão. Nada disto nos preocupava, esse fenómeno tinha com certeza uma explicação lógica. Por enquanto, bastava secar o piso pela manhã e fazer o mesmo no dia seguinte.
A casa de banho, que ao princípio parecia tão interessante, com a banheira na qual imaginara tomar grandes banhos de imersão, apavorava-me. Quando precisava de lá ir, nem me atrevia a olhar para o espelho!
Mas era utilizada pelos meus irmãos, que ainda não estavam na idade do medo, para treinarem mergulho e apostarem para ver quem passava mais tempo debaixo da água sem respirar. Aliás, um deles ficou com esse vício desde então e, nas casas onde morámos depois, na falta de banheira, metia a cabeça dentro de um balde cheio de água para ver quanto tempo aguentava sem respirar…
A falta de luz durante a noite era algo muito aborrecido e a única forma de atenuar essa falta era ter sempre em casa, uma boa quantidade de velas, porém houve uma noite em que elas não foram suficientes.
Acordámos a meio da noite com um ruído estranho, um chocalhar persistente que a minha mãe identificou como o som característico das cobras cascavel, o que não era de estranhar naquele país, ainda mais numa localidade tão rural e com o terreno das traseiras cheio de ervas. Com muito cuidado inspeccionámos tudo à nossa volta, debaixo das camas e em cima delas, nos poucos móveis e em todos os recantos da casa sem encontrar nada, mas quando ficávamos em silêncio, voltávamos a ouvir o mesmo som abafado de chocalho.
Quando as velas se acabaram o medo aumentou, só nos ocorreu ir para um quarto interior sem janelas, que estava completamente vazio. A minha mãe rasgou um lençol e pegou-lhe fogo para iluminar o espaço e verificou que nada havia ali nem havia a possibilidade de que um qualquer bicho rastejante pudesse entrar; depois foi rapidamente procurar mais lençóis e cobertores, enquanto nós esperávamos com o coração na boca. Depois de os sacudir – os lençóis – e verificar que não tinham qualquer bicharoco, entrámos todos para aquele cubículo fechando a porta rapidamente.
Apenas os meus irmãos pequenos conseguiram dormir um pouco, a minha mãe e eu não pregámos olho até ao amanhecer. Eu estava paralisada pelo medo e o frio.
Quando surgiram os primeiros raios de sol abrimos cuidadosamente a porta e vasculhámos toda casa sem encontrar nada, só então respirámos de alívio embora continuássemos convencidas de que uma cascavel atrevida tinha passado por ali.
Também já nos tínhamos acostumado a ver as luzes se acenderem numa luz muito débil e apagar-se pouco depois, isto várias vezes durante a noite. Atribuíamos sempre o facto ao mau funcionamento do gerador, apesar das vizinhas assegurarem que isso não lhes acontecia. Também nos acostumámos ao barulho irritante de vidros que se partiam nas madrugadas de domingo. Era com se alguém se divertisse a partir garrafas durante horas; algumas vezes parecia que se ouviam vozes misturadas com o som de quebrar vidros, que parecia ser mesmo nas traseiras da casa, acontecimento que atribuíamos a alguma briga de um bar, embora o bar mais próximo ficasse a algumas ruas de distância e, mais uma vez, ninguém da vizinhança ouvisse estes barulhos.
Também passamos um sustou ma noite, quando as galinhas que deviam estar a dormir no barracão fizeram uma grade confusão, piando , batendo as asas, saltando de um lado para outro, de tal modo que , acendemos as velas que tínhamos e fomos espreitar, em fila indiana, cada um com a sua vela acesa, mas logo que nos aproximamos da porta, as galinhas sossegaram, e sentimos, todos, um sopro muito próximo, que apagou todas as velas! Atropelamo-nos na escuridão e corremos, outra vez, para o quarto mais seguro da casa, onde nos tínhamos refugiado quando pensamos que uma cascavel, que nunca vimos, andava por casa...
É verdade que eram tempos de muitas preocupações e a minha mãe andava naturalmente angustiada, tinha medo de estar sozinha com três crianças, um cão, algumas galinhas e até um coelho, sem contar com o arbusto de abacateiro numa lata de leite em pó.
Mesmo estando convencida de que não acreditava em almas do outro mundo vagueando pela casa nem nas histórias que a vizinhança contava sobre aquele lugar, era natural que no subconsciente existisse um espaço de dúvida, um “se” que a fazia sentir-se inquieta e lhe causava noites de insónia.
 Por isso mesmo, com o passar do tempo e a repetição de situações estranhas e de difícil explicação, era natural que estes fizessem estragos no sistema nervoso e é certo que nada é mais assustador do que o desconhecido.
Um dia, logo pela manhã, encontrei a minha mãe com uma expressão aterrorizada metendo rapidamente os nossos pertences em caixas e sacos e, quando eu quis saber o que acontecia, ela só me respondeu que nos íamos embora daquela casa.
 Nunca me explicou o que a levou a tomar essa decisão tão repentina e eu não voltei a perguntar, mas senti que era urgente sair dali.
Nesse mesmo dia saímos à procura de outro lugar onde ficar, a vizinhança toda nos ajudou nessa procura, mas só conseguimos descobrir outra casa disponível numa povoação próxima chamada Bejuma. A casa era de barro e canas com chão de terra batida, uma autêntica cabana, mas isso não tinha importância: o importante era ficar longe daquela casa, assombrada ou não…
Alguns dias depois o meu pai chegou e ficou combinado que nos mudaríamos para a cidade onde ele trabalhava, tão depressa quanto ele conseguisse encontrar uma casa para nós.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

CRÓNICA | A PONTE, de Anita Dos Santos


Texto: Anita dos Santos
Foto da Autora: D.R.


Sabia-se que a Cidade Central estava próxima quando se avistava uma imensa ponte que ligava os dois lados de um vale onde em tempos idos tinha corrido um rio grandioso. Esta ponte, já não havia memória de quem a tinha construído. Uns diziam terem sido os primeiros magos, com as suas artes, outros diziam terem sido construtores antigos de épocas passadas, com outros saberes, que, entretanto, foram esquecidos. O certo é que a magnificência do intrincado dos arcos altos da ponte, levava a que quem a atravessava pensasse como era possível toda aquela pedra negra estar levantada ao alto, sem cair, sustentada por uns poucos pilares que pareciam frágeis para sustentar tal envergadura. A outra coisa que deixou os viajantes deslumbrados, foram os rendilhados de que todas as pedras negras da ponte eram feitas. Aqui podiam ver-se grossas cordas. Desviando os olhos encontravam-se intrincados de hera, depois era um salmão que parecia saltar da pedra, mais adiante surgia uma águia em pleno voo. Mais além, um esquilo trepava por um tronco de uma videira carregada de cachos de uvas.
A ponte parecia abarcar toda uma história que alguém quisera, um dia, contar.
- A mãe falou-me da ponte, mas não quis entrar em detalhes.
Vicente, de nariz no ar, não sabia para que lado virar os olhos.
- Pois, elas não quiseram foi estragar a surpresa se falassem sobre o assunto. – André, observava com atenção, uma abelha inserida na pedra que parecia ir ganhar vida.
Levaram o seu tempo na travessia e, ao chegar ao outro lado o Bosques disse:
- E já há muito tempo que “nã” passava aqui. Longos anos.
Um dos olhos olhava para os arcos da ponte e o outro para o outro lado, de onde acabavam de vir com ar pensativo.
- O Bosques conhece este sítio? Já aqui esteve? – O espanto do Vicente espelhava o do André.
- E já estive em muitos sítios. E eu tenho longos anos. Longos anos! Conheço muitos lugares e muitas gentes.

In … algo ainda em andamento
Anita dos Santos

terça-feira, 12 de maio de 2020

DIVULGAÇÃO LITERÁRIA | "O dia em que perdemos o amor", de Javier Castillo - em pré venda | SUMA DE LETRAS


Texto: Isabel de Almeida & Suma de Letras
Foto: Suma de Letras Grupo Penguin Random House D.R.

No momento em que todos nos tentamos adaptar o melhor possível a uma nova realidade, o Grupo Penguin Random House regressa à actividade editorial com novidades que seguem para as livrarias ainda neste mês de Maio.

Da chancela Suma de Letras, chega às livrarias no próximo dia 26 de Maio mais um thriller de Javier Castillo, autor do aclamado livro " O dia em que perdemos a cabeça" chega-nos agora a sequela sob o título "O dia em que perdemos o amor".

Encontra-se disponível em e-book o livro inicial da série - O dia em que perdemos a cabeça - por um preço promocional muito acessível no site da Kobo (clique AQUI) de €4,99.

Os leitores que desejem garantir já a rápida leitura do novo livro têm também uma excelente notícia, a obra "O dia em que perdemos o amor" encontra-se já em pré venda nas livrarias online.

«Javier Castillo é, sem dúvida, o novo fenómeno da literatura europeia.» Joël Dicker

«O Stephen King espanhol.» ABC

Sobre o livro:

Um novo thriller delirante e cheio de suspense, em que o amor e o ódio farão o leitor mergulhar numa experiência de leitura que lhe porá o coração a bater a mil.
O inspector Bowring, chefe da unidade de Criminologia, tentará descobrir o que escondem a jovem e as notas amareladas que traz consigo e desvendar também a sua ligação com o caso de uma mulher cujo nome figura numa das notas e que aparece, horas depois, decapitada num campo.
Esta investigação vai envolver Bowring numa trama na qual o destino, o amor e a vingança estão entrelaçados numa história horrível que abrirá antigas feridas difíceis de fechar.

Sobre o autor:

JAVIER CASTILLO cresceu em Málaga, Espanha, licenciou-se em Gestão de Negócios e fez Mestrado em Gestão da ESCP Europe em Madrid, Xangai e Paris. Trabalhou como consultor de finanças corporativas. O dia que perdemos a cabeça, o seu primeiro romance, vendeu mais de 275 000 cópias, cruzou fronteiras — em Itália, prepara-se um grande lançamento — e será publicado no México e na Colômbia, além de Portugal. Os direitos audiovisuais foram adquiridos paraa produção duma série televisiva. Este segundo romance, "O Dia em Que Perdemos o Amor", fez crescer ainda
mais o sucesso de Javier Castillo em todo o mundo.

Ficha Técnica do Livro:

O DIA EM QUE PERDEMOS O AMOR

De Javier Castillo

Maio de 2020

Suma de Letras

ISBN: 978 – 989 – 665- 737-6

456 páginas

PVP: 21,90€



sábado, 9 de maio de 2020

O VALOR DO QUE NÃO TEMOS, de Fernando Teixeira















Uma das características do ser humano é a de dar valor a alguma coisa, apenas quando se vê privado dela. Haverá excepções, claro está, mas a regra é essa. Acontece assim com a saúde, com o emprego, com os meios de subsistência, com a segurança, com as facilidades da nossa vida quotidiana que nos asseguram o bem-estar e, até, com questões menos materiais, mas igualmente nobres, como a liberdade.
Recentemente, vivemos duas datas que celebram conquistas importantes na vida dos cidadãos deste país, hoje já quase tão banais e dadas como adquiridas que nos distraímos facilmente da grandeza do seu significado: essa liberdade, gritada a plenos pulmões há 46 anos atrás, traduzida no direito à livre expressão individual e na possibilidade de reunião e de manifestação pública de grupos e associações, a deslocação sem constrangimentos, a liberdade de culto e do exercício de ideologias políticas, o acesso ao ensino e a cuidados universais de saúde, a sã convivência social e todos os demais aspectos civilizacionais de uma sociedade democrática.
Entretanto, o mundo mudou e as medidas de controlo da pandemia do coronavírus, que temos enfrentado, vieram coarctar-nos na nossa liberdade de movimentos, na liberdade de nos reunirmos, de nos deslocarmos, de viajar, de exercer a profissão no local de trabalho habitual, de estarmos juntos e de convivermos uns com os outros. A maior parte dos cidadãos viu-se reduzida à condição de população confinada ao seu local de residência, salvo aqueles que, ao abrigo das excepções dos regimes de Estado de Alerta, de Emergência, de Calamidade, ou de como se lhes queira chamar, continuam estoicamente a exercer a sua actividade fora de casa: uns, heróis, na frente de um combate sem tréguas, a fazer os impossíveis para tratar e salvar os enfermos, arriscando-se, eles próprios, a ser contagiados; outros na retaguarda, valentes, providenciando com o seu trabalho que a vida da população, em geral, possa continuar fornecida de bens essenciais; outros, ainda, garantindo a nossa segurança em tempos conturbados.
Ao fim de quarenta e seis anos, duas das datas importantes da democracia portuguesa foram vividas em confinamento e em recolhimento social. Não porque tivéssemos medo de um regime político opressor, mas tão-somente porque o inimigo agora é outro, igualmente sinistro, também autoritário. Um inimigo invisível e silencioso, insidioso, que nos obriga a mil cuidados, que apela à nossa reflexão e, sujeitando-nos, apenas nos conduz a uma nova vontade de nos libertarmos do jugo que nos tolhe, uma vez mais. E, novamente, reinventámo-nos.
Na impossibilidade de, livremente, este ano, se poderem celebrar datas como o 25 de Abril ou o 1º de Maio, em manifestações públicas de carácter político, sindical ou cultural, foram estas substituídas por iniciativas individuais, muitas vezes com suporte autárquico, levando um pouco de animação cultural aos centros populacionais, conferindo um toque, uma pincelada de festejo. E as pessoas vieram às janelas e aliaram-se a essas iniciativas, redescobrindo um sentido de unidade e solidariedade comunitária.
Porém, mais importante do que isso, cada um terá sabido comemorar o sentimento de liberdade no interior de si mesmo. Apesar das restrições impostas, e talvez por causa delas, cada um de nós terá sentido, à sua maneira, a importância daquilo que presentemente nos está a ser subtraído e terá valorizado o que agora não tem. Não só naquelas duas datas mas durante todo o tempo de confinamento que passou e naquele que ainda devemos e tivermos de suportar, há que ter a certeza de que a conquista de sermos democraticamente livres se manteve e se mantém viva, no respeito da individualidade de cada um e na do outro, ainda que, para isso, um homem tenha que desfilar sozinho no meio de uma avenida deserta, transportando, na enorme bandeira nacional que carrega às costas, o orgulho e a honra de ser português, cidadão livre, e, nos dias que correm, o privilégio de se manter com saúde.

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A MULHER QUE ERA CARTEIRO, de Maria Cecilia Garcia















A Mulher que era carteiro. Maria Cecília
Em todas as localidades existe um ou dois personagens fora comum. Geralmente não são apreciados localmente, quase sempre só lhes é dado valor ou sã, apreciados, depois deles desaparecerem.
 Foi o caso desta mulher excepcional, que marcou a sua vida e a terra onde morava, pela diferença. É esta diferença que faz com que faça parte da história e seja lembrada por todos.  Creio que foi a única mulher a exercer essa profissão, não só na sua freguesia, mas em da a ilha.
 Enquanto somos lembrados, somos imortais.

"Existia na aldeia uma mulher que era uma personagem muito peculiar: a mulher carteiro.
 O marido tinha emigrado para o Brasil, deixando-a com três filhos para criar, quando ela era ainda muito jovem.
 Não sendo de família endinheirada, trabalhava na agricultura, mas era também, o carteiro da aldeia. Durante uma vida inteira, esta mulher calcorreou, descalça, quase sempre, as íngremes e perigosas veredas, saltitou como uma cabra montanheira as escarpadas rochas e deslizou à beira de precipícios, todos os dias, fosse Inverno ou fosse Verão, fizesse chuva ou fizesse sol.
Era ela que levava as saudades dos que ficaram na aldeia, dos filhos e maridos que tinham embarcado e, era ela ,quem trazia de volta as notícias que os acalmavam.
Toda a aldeia ficava à espera pois ela chegava, pontualmente, um pouco antes da hora do almoço.
Nos dias de vendaval e chuva, quando as pedras escorregavam das escarpas e vinham cair nos caminhos, a freguesia agitava-se e muita gente se concentrava no largo, ansiosa, só respirando de alívio ao avistar na última curva da estrada, a ágil figura da Maria Dora.
Ela não trazia apenas o correio, trazia também o jornal diário, a encomenda do padre e do regedor, o pano e as linhas de bordar ou de croché e os produtos de farmácia, entre muitas outras coisas, que as pessoas da aldeia lhe pediam. Não sabia ler nem escrever, mas realizava com eficácia todas as encomendas. Tinha esperteza e boa memória, além de experiência de vida.
Creio que nunca se negou a fazer qualquer favor, sempre de graça, embora aceitasse de bom grado uma gratificação, aliás, toda a gente sabia que era melhor agradecer…
 É que ela tinha uma língua viperina, todos temiam os seus comentários ácidos.
Ela jurava que nunca inventava nada mas, o que sabia, tinha que dizer conforme ouvia, justificava-se, sem verificar a veracidade da notícia.
 Por vezes queixava-se, pois sempre que havia alguma novidade, uma bisbilhotice nova, diziam que tinha sido ela a espalhá-la e, tal como os terroristas dos dias de hoje, ela não gostava de ser acusada por algo não tinha feito.
 Tinha uma certa “ética”, quando espalhava uma novidade, fazia questão de informar, sempre, a sua fonte de informação. Abusava da ironia e dos comentários ácidos. Quase todos a temiam, mas também a usavam,quando queriam espalhar algum boato. Costumava dizer :Eu é que sou a bilhardeira, mas há muitas sonsas por aí que são muito piores do que eu! Vão para a igreja bater no peito, mas têm pecados de rabo !
Era a mulher melhor informada daquelas bandas. Ao entregar o correio, publicava as notícias que trazia de fora, os diz-que-disse, as intrigas e maroscas, até os falecimentos e casamentos daquele lado da ilha. A bem dizer, de toda a ilha, pois os seus encontros com os colegas forneciam-lhe matéria de primeira página, literalmente. Mesmo não sabendo ler, ouvia, atentamente, as leituras e as conversas   dos outros, isso dava lhe muita informação que ela não podia confirmar. Dizia:-assim ouvi e assim conto, se é mentira, não é minha!.- 
Dizia-se que em jovem era bonita, que tinha sido atacada pela febre tifóide e essa doença a tinha deixado sem cabelo e  fez-lhe cair, um a um, todos os dentes. Mas o povo comentava que tinha sido devido ao desgosto que sofreu, quando foi abandonada pelo marido.
Nunca se vestiu de viúva nem arranjou outro homem, e continuou vivendo na casa da mãe, até à morte.Apesar de ser uma mulher mais liberdade do que as outras, e ser muito alegre e comunicativa, que falava e brincava da mesma forma com todos, fosse homem ou mulher, fosse um doutor ou um mendigo, tudo isto, num tempo em que as pessoas estavam cheias de preconceitos e desconfianças, apesar disso, nunca, ninguém, pôs em causa a honestidade e seriedade desta mulher.
Era muito alegre, gostava de uma boa conversa, onde não faltasse o bom humor e o sarcasmo.
Quando a conheci ainda distribuía o correio, mas já andava calçada, e a aldeia já tinha uma estrada e um furado. Ela aproveitava a boleia do padeiro para ir à Vila e quase sempre encontrava alguém que a levasse de volta. Mas não lhe custava nada percorrer a via, ainda em terra batida, que a levava até à aldeia, com passo firme, apesar da idade já avançada.
Continuava sem dentes, embora tivesse tentado, por várias vezes, utilizar uma prótese, nunca conseguiu adaptar-se a esse artefacto, mas o seu cabelo, era forte e brilhante, muito preto, quase sem brancas, com o qual tecia uma trança que enrolava no alto da cabeça. Dizia que o segredo da sua forte cabeleira, perdida durante a sua doença, era uma loção,feita por ela, à base de azeite, álcool e cânfora, à qual juntava algumas ervas, e que aplicava diariamente no cabelo.
Mas ela não era apenas a mulher do correio. Era uma excelente massagista, durante gerações, endireitou pernas e braços, e mesmo colunas, e curou o “buxo virado” das crianças.
Posso assegurar que quase toda a aldeia passou pelas suas mãos.
Conhecia bem o poder das ervas, conhecimento que partilhava com todos aqueles que pedissem a sua ajuda. Orgulhava-se de ter curado muitos casos de asma com as suas mezinhas.
Reformou-se com uma pequena pensão depois de mais de quarenta anos de trabalho duro.
Os filhos, que emigraram muito novos, como era usual na época, por lá fora se mantinham, mas ela continuou endireitando ossos e curando o buxo das crianças até já não poder, quando os dedos das suas mãos ficaram deformados de tanto massajar e endireitar ossos.
Morreu inesperadamente, só, na casa onde sempre viveu. Só deram pela sua falta muitas horas depois."
Extracto de: História em Pedacinhos -As casas da minha infância e os tempos de chá sem açúcar.

Grafia anterior ao AO 1990

domingo, 3 de maio de 2020

A CASA, de MBarreto Condado















“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”


No momento, em que a quarentena nos começa a afectar mais do que esperávamos e as palavras se tornam no nosso último refúgio.

Quando Vinicius de Moraes escreveu a letra de “A Casa”, não sabia o quanto me ia ajudar neste dia da mãe, finalmente percebo que a quarentena não só me tornou uma pessoa mais atenta ao que me rodeia como me faz pensar na actualidade das suas palavras.

A verdade é que vivo rodeada por duas casas. Sim, leram bem, duas casas.
E azar dos azares, a única que fica paredes meias comigo é segundo as próprias palavras de Vinicius: “Era uma casa, muito engraçada, não tinha tecto, não tinha nada,…”, porém,  verdade seja dita, tecto tem.

“Ninguém podia entrar nela, não. Porque na casa não tinha chão,…” o tipo de chão que tem não sei, mas asseguro que tem alcatifa de merda e mijo de cão, esporadicamente lavada à mangueirada para a minha porta, qual requintado tapete de tear. Se lá podem entrar ou não..., a família vejo entrar, ainda que de galochas de cano alto. Quanto ao sentido olfactivo, digamos que há quem goste de Rive Gauche e quem eleja Alheira digerida.

“Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede,…” essas posso quase garantir que tem, porque, verdade seja dita, os manos Neandertal podem não saber utilizar os talheres, mas aprenderam habilmente a usar martelos.

“Ninguém podia fazer pipi, porque penico não tinha ali,…” nesta estrofe é que a porca torce o rabo. E utilizo o pobre suíno numa fraca comparação com os verdadeiros porcos. A verdade é que não têm penico, felizmente para mim, caso contrário em vez de me correrem rios de merda à porta, com investidas pelas duas frentes, era certo que a mesma voaria. 

“Mas era feita com muito esmero,…” disso ninguém duvide, porque lá martelar eles martelam e em falta de ferramentas vai mesmo com os cornos.

“Na Rua dos Bobos, número zero.”, não lhes chamaria bobos. Inclino-me mais para ignóbeis, grosseiros, asnos, fúteis, num bom dia talvez sejam somente mal-informados, frutos da educação que evidentemente lhes falta. Neste ponto gostaria de mostrar o meu apreço à instituição do ensino obrigatório para lá da quarta classe. 

Mas é evidente que os manos também têm as suas “qualidades”. O mais velho por exemplo, consegue a proeza de beber mais cerveja do que um camelo no deserto, mantendo-se permanentemente em estado semicomatoso. A forma que encontrou para contornar o asilo forçado na casa matriarcal, engolindo sapos de pernas abertas, que a querida mãe lhe cozinha numa base diária. Dieta que ouviu num programa matutino e que faz questão de lhe aplicar de duas em duas horas. Verdade seja dita, o imberbe mantém-se hirsuto como um caniço. Quanto ao mais novo, a mãe queria uma filha daí o trauma de viver com o nome de miúda, é, porém, um ás na declamação do alfabeto gasoso e de um só travo. Se nos seus vinte e tal anos de vida tem continuado os estudos, sem a ajuda monetária do seu progenitor, a declamação com ar de regozijo da tabuada gasosa seria a sua segunda proeza conquistadora.