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sábado, 23 de maio de 2020

CRÓNICA | O REGRESSO, de Fernando Teixeira


Texto: Fernando Teixeira
Foto do Autor: D.R.


Voltava lá, muitos anos depois. Por sua mea-culpa, décadas mesmo, talvez três, já não sabia precisar. Só sabia que esse muito tempo lhe fizera renascer a vontade de lá voltar. Nesse regresso, pretendia redescobrir cenários que pertenciam ao seu passado, rever lugares que haviam feito parte de uma parte da sua vida e dar-se à oportunidade de reavivar sensações arquivadas no recôndito da memória e do coração. Por muito tempo que tivesse passado, essas imagens e sensações permaneciam indeléveis e, estando ele então a poucas dezenas de quilómetros de distância, de férias, aquela vontade tornou-se urgência.

Enquanto conduz o que falta para o destino, aquele homem de meia-idade regressa à sua infância e adolescência. Os olhos fixam o asfalto da estrada, mas pela tela da sua mente passam imagens de uma casa de pedra e dos espaços envolventes, adicionam-se sons e cheiros, memórias de momentos de brincadeira e de alegria, de inocente descoberta do campo, longe da cidade. Contudo, afloram-lhe também resquícios de introspecção, recordações de temores vários, de sons assustadores, da noite e de sítios cuja escuridão o fazia correr para o conforto e a segurança da casa, onde havia luz de velas, ou de candeeiros a petróleo, e gente.

Em tempos idos, uma viagem tremenda: de autocarro desde Lisboa até ao Porto, durante a noite, seguida de outra em comboio a vapor, partindo de Campanhã ao início da alvorada, depois um trajecto em automotora movida a diesel até à sede do concelho, para terminar num troço final em novo autocarro, por estradas de curva e contracurva que conduziam invariavelmente a um incómodo enjoo. Sorriu ao pensar como essa morosidade e consequentes dificuldades podiam, nos dias de hoje, ser facilmente substituídas por uma cómoda viagem de cinco horas em viatura própria, quase toda por auto-estrada até poucos quilómetros dessa aldeia do Minho profundo, que nem aldeia será, apenas um lugar.

Aquelas férias não podiam excluir esse encontro com o passado.

De repente, as imagens da memória tornam-se vivas. Primeiro, a ponte. Sim, lembra-se dela, lembra-se de a ponte ser assim, com aqueles arcos de pedra branca e gradeamento de ferro, lembra-se agora mais nitidamente. E sabe que, dentro de um par de quilómetros, encontrará um desvio à direita, após a placa com o nome da terra dos avós. As recordações agitam-se-lhe nos olhos, que ameaçam humedecer. Quase em simultâneo, materializam-se a paragem onde apanhava o autocarro para ir à vila mais próxima, que outrora fazia a carreira apenas duas vezes por dia, a placa toponímica branca da saudade e o ansiado desvio, a curva apertada que guarda na mente. O coração sobressalta-se-lhe de expectativa e emoção.

Duzentos metros em ligeira subida e novos fotogramas de infância e adolescência: o enorme tanque rectangular de pedra, onde as mulheres lavavam a roupa, lembra-se bem dele, e dali um caminho que costumava calcorrear quando por ali passava umas temporadas. Subindo a estreita estrada mais algumas dezenas de metros, eis finalmente a antiga casa dos avós paternos, agora fechada. Chegou ao destino da sua viagem e, demoradamente, percorre a envolvente da habitação, recuperando memórias, identificando locais que não havia esquecido: a entrada da casa, o lagar na cave, o lugar da capoeira, o espaço da pocilga que se transpunha por um conjunto de tábuas a fim de passar para um carreiro do outro lado, os muros de pedra com musgo, os caminhos de terra de um castanho intenso, os degraus que transpõem os socalcos de terreno, as árvores em volta. Aquele homem, embevecido, procura um espaço estreito entre edificações ao longo do qual costumava correr uma linha de água cristalina e por onde, criança, ousava descer um desnível de três metros por umas pedras incrustadas no muro da casa, sem qualquer corrimão onde se agarrar. Agora, na meia-idade, já não o fará, sente que é perigoso e sabe que lhe falta a intrepidez dessa criança que foi.

Enche o peito daquele ar que só se respira ali, inundando-se de odores que lhe são queridos, uma mistura de cheiros a campos de milho, vinhas, feno e mosto de vinho verde impregnado no granito ancestral. Falta-lhe o som da água borbulhando na pequena levada, seca pelo estio, mas parece-lhe ainda ouvir o chiar agonizante dos eixos dos carros das juntas de bois que o atemorizava em miúdo.
O desejo está cumprido e a vontade saciada. A noite aproxima-se.

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)











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