Uma das características do ser humano é a de dar valor a alguma coisa, apenas quando se vê privado dela. Haverá excepções, claro está, mas a regra é essa. Acontece assim com a saúde, com o emprego, com os meios de subsistência, com a segurança, com as facilidades da nossa vida quotidiana que nos asseguram o bem-estar e, até, com questões menos materiais, mas igualmente nobres, como a liberdade.
Recentemente, vivemos duas datas que celebram conquistas importantes na vida dos cidadãos deste país, hoje já quase tão banais e dadas como adquiridas que nos distraímos facilmente da grandeza do seu significado: essa liberdade, gritada a plenos pulmões há 46 anos atrás, traduzida no direito à livre expressão individual e na possibilidade de reunião e de manifestação pública de grupos e associações, a deslocação sem constrangimentos, a liberdade de culto e do exercício de ideologias políticas, o acesso ao ensino e a cuidados universais de saúde, a sã convivência social e todos os demais aspectos civilizacionais de uma sociedade democrática.
Entretanto, o mundo mudou e as medidas de controlo da pandemia do coronavírus, que temos enfrentado, vieram coarctar-nos na nossa liberdade de movimentos, na liberdade de nos reunirmos, de nos deslocarmos, de viajar, de exercer a profissão no local de trabalho habitual, de estarmos juntos e de convivermos uns com os outros. A maior parte dos cidadãos viu-se reduzida à condição de população confinada ao seu local de residência, salvo aqueles que, ao abrigo das excepções dos regimes de Estado de Alerta, de Emergência, de Calamidade, ou de como se lhes queira chamar, continuam estoicamente a exercer a sua actividade fora de casa: uns, heróis, na frente de um combate sem tréguas, a fazer os impossíveis para tratar e salvar os enfermos, arriscando-se, eles próprios, a ser contagiados; outros na retaguarda, valentes, providenciando com o seu trabalho que a vida da população, em geral, possa continuar fornecida de bens essenciais; outros, ainda, garantindo a nossa segurança em tempos conturbados.
Ao fim de quarenta e seis anos, duas das datas importantes da democracia portuguesa foram vividas em confinamento e em recolhimento social. Não porque tivéssemos medo de um regime político opressor, mas tão-somente porque o inimigo agora é outro, igualmente sinistro, também autoritário. Um inimigo invisível e silencioso, insidioso, que nos obriga a mil cuidados, que apela à nossa reflexão e, sujeitando-nos, apenas nos conduz a uma nova vontade de nos libertarmos do jugo que nos tolhe, uma vez mais. E, novamente, reinventámo-nos.
Na impossibilidade de, livremente, este ano, se poderem celebrar datas como o 25 de Abril ou o 1º de Maio, em manifestações públicas de carácter político, sindical ou cultural, foram estas substituídas por iniciativas individuais, muitas vezes com suporte autárquico, levando um pouco de animação cultural aos centros populacionais, conferindo um toque, uma pincelada de festejo. E as pessoas vieram às janelas e aliaram-se a essas iniciativas, redescobrindo um sentido de unidade e solidariedade comunitária.
Porém, mais importante do que isso, cada um terá sabido comemorar o sentimento de liberdade no interior de si mesmo. Apesar das restrições impostas, e talvez por causa delas, cada um de nós terá sentido, à sua maneira, a importância daquilo que presentemente nos está a ser subtraído e terá valorizado o que agora não tem. Não só naquelas duas datas mas durante todo o tempo de confinamento que passou e naquele que ainda devemos e tivermos de suportar, há que ter a certeza de que a conquista de sermos democraticamente livres se manteve e se mantém viva, no respeito da individualidade de cada um e na do outro, ainda que, para isso, um homem tenha que desfilar sozinho no meio de uma avenida deserta, transportando, na enorme bandeira nacional que carrega às costas, o orgulho e a honra de ser português, cidadão livre, e, nos dias que correm, o privilégio de se manter com saúde.
(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
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