Texto: Fernando Teixeira
Foto do Autor: D.R.
Na
primeira crónica deste ano, desejei que 2020, mais do que um ano mais, fosse
realmente um novo ano, diferente. Para melhor, desejava eu. Muito pelo
contrário, este fatídico ano parece apostado em só nos apresentar dramas e motivos
de apreensão, incerteza, confusão. Definitivamente, um ano para esquecer…
Digo
“parece” e “só”, porque sei bem que uma moeda tem sempre duas faces. Se, por um
lado, muitos acontecimentos negativos nos têm acompanhado desde Janeiro, também
é verdade que toda essa negatividade revelou, em muitos de nós, o melhor do ser
humano, quais heróis combatendo o mal com o bem, oferecendo entreajuda e amor ao
próximo, incansavelmente.
Porém,
são as imagens de dor e tragédia que demoram mais tempo a desvanecer-se da
nossa mente, talvez porque as repudiamos e vão contra o nosso ideal de paz,
saúde, tranquilidade e bem-estar.
O
mundo ainda vivia submergido pela calamidade da Covid-19, a qual já provocou
centenas de milhares de mortes, quando se viu confrontado com o angustiante vídeo
do assassínio de um cidadão afro-americano, de nome George Floyd, deixado a
asfixiar durante quase nove minutos, numa detenção policial de força bruta
despropositada e inclemente, no estado norte-americano de Minneapolis. Através
de imagens que correram o mundo inteiro, aquele homem de 46 anos, algemado e
subjugado de bruços, suplicou diversas vezes que não conseguia respirar, e
gritou pela mãe, enquanto um agente da polícia comprimia o seu pescoço contra o
asfalto com o joelho e outros dois exerciam pressão nas costas do detido,
alegadamente porque ele teria tentado pagar algo com uma nota de vinte dólares,
supostamente falsa. É o que dizem. A ser verdade, uma vida por 20 dólares.
Triste, muito triste, condenável. Sem palavras!
Tudo
isto num mundo que recentemente tem visto partir muitos dos seus cidadãos,
muitos deles também de bruços numa cama de hospital, também eles numa asfixia
lenta e sem poderem implorar por clemência. Apesar de esmerados cuidados
clínicos, dos seus peitos, invadidos por tubos de ventiladores mecânicos, saem brados
silenciosos que, desesperadamente, repetem as mesmas palavras de George Floyd: I can’t breathe! Não consigo respirar!
O
drama da pandemia que se tem vivido nos últimos meses, precisamente com os
Estados Unidos no topo da tragédia, em número de casos e de vítimas, parece não
ter produzido qualquer efeito, no sentido de sensibilizar mais, alguns, para o
valor da vida humana que se pode perder quando menos se espera. Enquanto muitos
a perdem prematuramente por contágio de um vírus maldito, ainda que o pessoal
médico tente os impossíveis para reverter a sua situação crítica, George Floyd
perdeu a vida às mãos de um elemento das forças de segurança de Minneapolis, e de
seus cúmplices, que nada fizeram para o evitar, surdos aos apelos angustiantes
da vítima e de testemunhas, devolvendo apenas aquele ar sobranceiro e gozão do
poder da farda, ao mesmo tempo que uma vida se esvaía atrozmente.
Aquela
morte evitável, no dia 25 de Maio, mergulhou dezenas de cidades dos Estados
Unidos num caos de protesto e violência que sempre emerge quando se verificam
estes atropelos à dignidade da vida humana, infelizmente frequentes na
sociedade americana onde o estigma do racismo e das desigualdades de
oportunidades, segundo a cor da pele, é sistémico e continua bem vivo.
O
primeiro semestre de 2020 tem sido de tirar o fôlego. O flagelo pandémico que
nos atingiu, ceifando centenas de milhares de vidas nos cinco continentes, e o
pior da natureza humana, reflectido nas convulsões sociais a que temos
assistido e sempre latentes um pouco por todo o lado, tiram-nos o fôlego. Não
conseguimos respirar pelo George Floyd nem pelas inúmeras vítimas de violência
e opressão, não conseguimos respirar pelas centenas de milhares de mortos da
Covid-19, não conseguimos respirar por quem não consegue obter condições
mínimas para sobreviver…
Se,
nos tempos que correm, o uso devido de máscara nos incomoda, pois dificulta a
livre respiração, regozijemo-nos por ainda o podermos fazer. Respiramos e
vivemos. Lembremo-nos de quem já não tem esse privilégio. Que descansem em paz!
(O autor escreve
segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
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