sexta-feira, 24 de julho de 2020

ARAUTOS DA MORTE, de MBarreto Condado















Os Arautos podem ter as mais diversas formas, podem ser alguém nosso conhecido, podem ser família.
Como os reconhecemos?
Por norma, são seres amargurados, depressivos, insatisfeitos, mal-amados, agiotas, mentirosos, falsos, rancorosos, de memória curta e selectiva, casos perdidos de solidão interior.
Ocupam o seu tempo das mais variadas maneiras, sempre numa tentativa de colmatar os buracos da sua fragilizada alma.
Os anos que deviam dar-lhes sabedoria e gratidão, transformam-se em enfado e contrariedade.
Tornam-se ásperos na sua ânsia de conseguir o que nunca tiveram, destratam quem sempre os estimou, acarinhou, aceitou como são.
E quando a mente amargurada, escurece e preparam o derradeiro golpe, não entendem que o que tanto desejam os perseguirá para além da morte.
Quando não tiverem a seu lado, a alma responsável pelas suas existências, nesse momento, entenderão que a Morte pela qual ansiavam, lhes levou a base de toda a sua sustentação e a vida como a queriam, deixa de fazer sentido.
E aquele buraco negro do qual julgavam ter saído, vai-se alargando até ao dia em que serão Arautos da própria Morte, entregues aos mesmos cuidados que em tempos proporcionaram, será nesse momento que sentirão na pele, nos seus derradeiros instantes, o vazio, o abandono, a tristeza de estarem sós.

SEMPRE ESTRANGEIRA, de Claudia Durastanti / DOM QUIXOTE - Tradução de Vasco Gato

Finalista do Prémio Strega
Nas livrarias a 28 de Julho























A primeira pergunta que lhe fazem sempre é como aprendeu a falar e, logo a seguir, em que língua sonha. Filha de pai e mãe surdos que se separaram pouco depois de terem os filhos – e sempre recusaram a vitimização, opondo ao isolamento do silêncio um carácter extrema mente combativo e passional –, a protagonista deste livro viveu uma infância verdadeiramente febril, sempre a andar de um lado para o ou tro – de Brooklyn, em Nova Iorque, para Basilicata, uma aldeiazinha em Itália – e da mãe para o pai; mas, tal como uma planta obstinada, foi capaz de criar raízes em todo o lado e, já adulta, acabou por repli car este comportamento migratório, fosse por causa dos estudos, da emancipação, do inescapável amor. Sempre Estrangeira é a história de uma educação sentimental contem porânea, desorientada pelo passado e pela consciência das diferenças físicas, das distinções sociais, da pertença a um lugar. Parte memória, parte narrativa culta e romanesca, é uma viagem fascinante em busca da auto-afirmação, na qual a geografia, a arte e a linguagem são simul taneamente armas de revolta e de redenção.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

PONTO ZERO, de Jørn Lier Horst & Thomas Enger / DOM QUIXOTE - Tradução de João Reis

Primeiro livro de uma série escrita a quatro mãos por dois dos maiores autores de policiais nórdicos.
Nas livrarias a 21 de Julho





















Oslo, 2018. A célebre ex-corredora de longa distância Sonja Nordstrøm não chega a aparecer para o lançamento da sua polémica autobiografia, Para sempre Número Um. Quando, nesse mesmo dia, a obstinada jornalista de celebridades Emma Ramm procura Nordstrøm em sua casa, encontra a porta aberta e sinais de luta no interior. E, estranhamente, um dorsal com o número «um» colado no meio do ecrã da televisão da sala.
O detetive Alexander Blix é nomeado para liderar a investigação do desaparecimento da atleta, porém ele carrega ainda as cicatrizes emocionais de uma situação de refém ocorrida há muito tempo, quando abateu o pai de uma menina de cinco anos. Vestígios de Nordstrøm começam a aparecer em diversos locais inesperados, mas o momento e a maneira como as pistas são descobertas parece ter sido cuidadosamente calculado.
Farão parte de um plano maior que ele ainda não está a conseguir ver?

Autor Fernando Teixeira


domingo, 19 de julho de 2020

CHAMAVA-SE CHRISTOS, de Maria Cecília















Chamava-se Christos Paabola.
Na siderúrgica onde o meu pai trabalhava, havia alguns engenheiros estrangeiros, a maioria era dos países nórdicos, entre eles, um finlandês, com o qual fez amizade. Morava na mesma cidade que nós e quase sempre dava boleia ao meu pai, quando vinha para casa ao fim-de-semana.
Christos Paabola, engenheiro metalúrgico, homem de estatura muito elevada e muitos quilos de peso, era a pessoa mais bonacheirona que conheci. Com aquele aspecto de gigante, de rosto muito rosado, pele grosseira e cabelos frisados, quase vermelhos, e um nariz grosso e esponjoso, tinha uma gargalhada estrondosa e contagiante. Com olhos muito claros, vivos e bondosos, e umas mãos enormes, aquele homem era a mais pura manifestação da alegria e da generosidade.
Todos gostámos dele desde o primeiro dia. Até a minha mãe. Tinha mulher, também finlandesa, chamada Ekaterina. Ao contrário dele, Ekaterina era pequenina, al, quase transparente, com os cabelos lisos e curtos, tão loiros que pareciam um campo de trigo no Outono, e meigos olhos azuis e serenos como um lago. O seu temperamento era muito suave e sorria sempre, diante das explosões destemperadas do marido.
 Tinham sete filhas, todas de idades muito aproximadas. A sensação que ficou em mim, ao lembrar-me delas, era estar diante de um coro de anjinhos loiros e felizes! A filha mais velha chamava-se Jristha e era alguns anos mais velha do que eu. Também era muito amável, e demonstrava uma grande segurança, o que me cativou. Tornou-se a minha heroína.
Recordo que ela estudava um curso de línguas e secretariado e eu insisti muito para que me deixassem ir para a mesma escola. Mas tal não foi possível. Aquela família feliz proporcionou-nos momentos muito agradáveis.
Christos, o finlandês, tinha uma grande carrinha Chevrolet, na qual demos alguns passeios que, de outra forma, nunca teríamos realizado. Com ele chegámos a ir até muito perto da fronteira com o Brasil amazónico, por estradas que rasgavam densas florestas e outras que rasavam a fronteira com a Guiana Francesa. Curiosamente, não recordo nenhum lugar em especial, apenas me lembro do verde da floresta, a estrada, e de um nevoeiro baixo e quente. Habituado a fazer longas viagens, ele conhecia tão bem as estradas que chegava a adormecer durante a condução. Nas viagens que fizemos juntos ele, às vezes, adormecia, porém, a mulher mantinha-se impávida e serena, enquanto a minha, nervosa, procurava mantê-lo acordado falando-lhe continuamente ou dando-lhe pequenos beliscões e safanões. Por sua vez, o meu pai tentava que a minha mãe deixasse o homem em paz, enquanto a mulher, sorria angelicamente.
 Quanto às crianças, que contando connosco eram onze, umas dormiam tranquilamente, outras ainda brincavam, e outras, como eu, tentavam manter-se atentas a tudo o que acontecia no interior daquele veículo. O finlandês contava que, nas ocasiões em que viajava sozinho, durante a noite, sofria ataques de sono. Nessas ocasiões, parava o carro na berma da estrada e estendia-se ao comprido, deixando os pés fora da janela do carro.
contava que, mais do que uma vez, ao acordar, descobria que lhe tinham roubado os sapatos. Ao contar isto dava gargalhadas sonoras e contagiantes, imaginando o desapontamento dos ladrões, ao ver o tamanho dos mesmos!

In História em Pedacinhos -As casas da minha infância e os tempos de chá sem açúcar

sexta-feira, 17 de julho de 2020

CRÓNICA | TODOS AO TRABALHO, de Anita Dos Santos


Texto: Anita dos Santos
Foto da Autora: D.R.

- E eu já disse que era “pra” irmos todos ao trabalho! – O Bosques tremia de impaciência.
- Pois então, digam-me lá como é que vocês fazem para as plantas crescerem. – Perguntou o Vicente encarando Ervilha de Cheiro que era quem se encontrava mais próximo de si.
Este baixou a cabeça, entristecido antes de dar a resposta à questão que lhe fora colocada directamente, e indirectamente a todos os outros.
- Sabes, cada dia se torna mais difícil, porque para que as plantas, as flores ou as árvores cresçam, elas têm de nos ouvir falar com elas, têm de escutar na raiz, nas folhas tudo quanto lhes transmitimos, têm de sentir o nosso amor. Cada dia é mais difícil de conseguir.
Mais uma vez, baixou a cabeça com a voz embargada sem conseguir continuar a falar.
- Só que nós estamos a perder a faculdade de comunicar quer com as plantas quer com os animais. – Desta feita foi o Cotovia a falar. – Eu cada dia tenho mais dificuldade em me fazer entender com voadores, essa é que é a verdade. E no dia em que deixarmos de comunicar totalmente, é o dia em que aquele desgraçado nos venceu.
- Pois, mas isso é que não vai suceder! – Exclama o André. – Porque não vamos deixar, não é assim?
- E eu pergunto-me se vocês sabem como havemos de fazer para sermos entendidos de novo.
O Bosques assentava o olho direito nos dois jovens, enquanto o esquerdo vigiava os pequenos feéricos.
- Temos algumas ideias que acho devemos pôr em prática. – Responde o André esfregando as mãos.
- Desde que não implique cozer ninguém numa panela… - Com um ar descrente o Traquinas, de sobrolhos erguidos, deu uma volta sobre si mesmo.
- Isso agora depende. Se fores tu a ir para dentro da panela… Até que estou de acordo! – E com esta tirada o Cardo tirou a vontade de brincar ao Traquinas, que o encarou com uma carranca.
Desmancharam-se todos a rir, como era de esperar, e a brincadeira e confusão ficou instalada, até que o Vicente soltou um assobio estridente que fez com que as atenções se centrassem nele.

In “Crónicas de André e Vicente – O Bosque dos Murmúrios”

AS SILABAS DE AMÁLIA, de Manuel Alegre / DOM QUIXOTE (Poesia)

Nas livrarias a 21 de Julho





















Um livro que é um tributo de Manuel Alegre ao centenário de Amália Rodrigues. Nele estão incluídos os poemas do autor que a fadista cantou e, para lá desses, dois poemas inéditos dedicados a Amália, entre eles, o que dá nome ao livro – As Sílabas de Amália.
Além de dois textos em prosa e de vários outros poemas sobre o fado. A maioria dos quais nunca antes publicados.
É também um testemunho da relação de convívio e amizade de Manuel Alegre com Amália Rodrigues e com Alain Oulman.
Um livro que será igualmente publicado em formato de audiolivro lido pelo próprio poeta.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

MARIA (CONTINUAÇÃO), de Mafalda Pascoal















Neste dia, Maria ia procurar um caminho que os levasse até à água e às árvores de frutos que se vislumbravam lá de cima. Como agora tinha tantos amigos, seria mais fácil lá chegar, e assim foi. Primeiro foram os passarinhos numa  grande chilreada, seguiram-se os macacos e depois  os coelhos... Maria ficou num sítio alto, de onde poderia ver os animais e as aves. Voaram e saltaram até que pararam num sítio específico, Maria ficou a olhar e a pensar se seria um bom lugar para descer, de repente surgiram dois passaritos por cima da sua cabeça, piavam, chilreavam, voavam na direcção de todos os outros, depois regressavam e fizeram isso até que Maria se resolveu a segui-los até aos outros. Quando lá chegou, verificou que na realidade estava um caminho muito branquinho que descia a fazer curvas. Todos em conjunto começaram a descer. Na descida viam-se muitas flores e começavam a ver-se muitas árvores e diferentes umas das outras. Grande parte delas cheias de frutos, conforme iam descendo, o barulho da água a cair era maior, só pelo barulho, Maria já sentia uma fresquidão tão agradável. Depressa chegaram à cascata, Maria correu para a lagoa, era tão tranparente... depressa entrou e brincou com toda aquela água, todos os animais e aves ficaram a vê-la tal era a sua alegria. Já cansada, Maria saiu da água e recostou-se numa pedra, olhava para o céu, o sol já estava a cair para o outro lado, o que queria dizer que devia regressar à árvor-mãe, a distância hoje era um pouco maior visto ter que subir até lá acima e tomar o caminho de regresso. Sentia-se cansada mas tinha que regressar, começou a subir ao mesmo tempo que apanhava frutos para comer e dar aos seus amigos, e assim quase sem dar por isso, Maria e os seus amiguinhos, já tinham chegado ao topo.
Chegaram à árvore-mãe e lá estavam os pequeninos com as suas mães, daí a nada começaram a chegar os macacos bebés com as suas mães, mais as gazelas com os pequenitos e todos se aninharam em redor daquela árvore majestosa. Maria já ia a dormir quando se recostou no seu ninho de ervas.
Mais uma noite passou e nada demais aconteceu. Maria acordou com todos os animais e aves à sua volta. Todos estavam contentes uns com os outros. Maria sentia-se contente e feliz mas ao mesmo tempo apreensiva porque estava sempre a lembrar-se do pai, deveria estar muito preocupado por não saber dela...
Maria aprontou-se para seguir caminho para a sua nova casa.
Lá foi saltando e cantarolando com todos os animais e aves... os lobos e os ursos cada vez ficavam mais perto dela... não fosse a saudade do pai, Maria sentia-se a pessoa mais feliz do mundo...
Depressa chegaram à cascata, passando pelas árvores de fruto, por aquele caminho forrado de uma fina camada de areia branca, sempre a descer... todos foram pra dentro da água... os passarinhos com toda a chilreada deles também passavam muito perto da água levando com os salpicos em cima, todos estavam felizes...
Depois dos banhos, todos se colocaram ao sol para secarem. Maria já dava voltas à cabeça a pensar como tratar das suas novas instalações... se calhar ainda não é a altura ideal para ficarem a li a morar, pois o coelhinhos ainda eram pequeninos para aquela caminhada, pensava ela... então decidiu que deixaria passar mais alguns dias e noites e ficariam ali definitivamente.
Começou a pesquisar todos os recantos daquele local. Descobriu ninhos de passarinhos, tocas com mais coelhos, e o que era engraçado é que nenhum animal fugia dela, era como se a conhecessem ou estivessem à espera dela...
Enquanto isso, o pai de Maria continuava na sua busca incansável pela filha. Andava desesperado, mas algo lhe dizia que não desistisse, que continuasse a procurá-la, ao contrário do que todos os outros diziam, principalmente a senhora V.
A esta altura, o pai de Maria já começava a sentir uma espécie de aversão à senhora V pois continua sem entender porque não tinha a filha em casa quando ele chegou, sabendo que Maria era uma criança humilde e acatava sempre o que lhe diziam, e ele sempre disse à filha que jamais deveria ir até à floresta, nem se chegasse perto. Entretanto pensou para consigo, irei ficar muito atento à senhora V... se calhar ainda vou descobrir algo que me leve à minha amada filha...
(Continua)

A autora escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.   

terça-feira, 14 de julho de 2020

O LUGAR DAS COISAS PERDIDAS. de Susana Piedade / OFICINA DO LIVRO






















Numa pacata vila de província, uma criança desaparece misteriosamente a caminho da escola, deixando a mãe em estado de choque e os vizinhos incrédulos e alvoroçados.
No início, todos se oferecem para ajudar Mariana a encontrar a filha, mas, como sempre acontece nos meios pequenos, as intrigas, os medos e as desconfianças acabam por desenterrar histórias do passado e segredos que se julgavam a salvo, desencantando um culpado em cada esquina.
O caso torna-se ainda mais enigmático quando, na manhã em que a Alice sumiu, quase todos os que lhe eram próximos tiveram, curiosamente, atitudes estranhas, pelo que, entre tantos rostos conhecidos, talvez ninguém esteja, afinal, completamente inocente. E o pior é que a única pessoa que assistiu a tudo é também a única que não o poderá contar.
Num romance trepidante que mantém o suspense até à última página, Susana Piedade – finalista do Prémio LeYa com o romance As Histórias Que não Se Contam – regressa ao tema
da perda e da culpa, oferecendo-nos uma história profunda e surpreendente, na qual quase nada é o que parece.

Autora Maria Cecília


segunda-feira, 13 de julho de 2020

OS PÁSSAROS CANTAM EM GREGO - DIÁRIO 3, de Rita Ferro / DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 14 de Julho





















Não é só a escrita de Rita Ferro que é imprevisível, a sua vida é um constante renovar de cenários e de forças. Quando a imaginávamos a viver serenamente na casa onde escreveu os diários anteriores, Veneza Pode Esperar e Só Se Morre Uma Vez, troca as voltas ao destino e desafia-se de novo: vende o apartamento, faz as malas e regressa ao campo, desta vez ao berço dos seus bisavós maternos. Aparentemente, perde tudo o que tinha conseguido: a proximidade da família, dos amigos, dos programas culturais, dos desafios profissionais e dos apoios urbanos. O que perde e ganha? Quanto vale agora, sem os expedientes e as distracções da cidade? Tem 65 anos e vive sozinha – conseguirá manter a chama, a alegria, o arroubo criador? E como ficou a sua relação com o amor?
A par dos romances que tem publicado, a escritora mantém a tradição de partilhar com os leitores a sua cronologia pessoal, através de diários que são também a sua forma de analisar os avanços e retrocessos do seu trajecto, as pulsões e contradições da sua alma.
Os Pássaros Cantam em Grego é o terceiro volume do seu diário.

REGRESSO A UM CENÁRIO CAMPESTRE, de Nuno Júdice / DOM QUIXOTE (Poesia)

Nas livrarias a 14 de Julho






















Regresso a um Cenário Campestre é um livro que começou a ser escrito nos últimos meses de 2019 e terminou na transição da epidemia para a pandemia, já em 2020. É um trabalho sobre as transformações resultantes da época que vivemos, em que se inclui uma sátira ao politicamente correcto e ao apagamento ou revisão da História. Os temas do amor e da natureza estão igualmente presentes na linha de livros anteriores, seguindo o jogo entre memória e imagem que é dominante na fase mais recente da poética de Nuno Júdice.

Autor Fernando Teixeira


Autora Anita Dos Santos


sábado, 11 de julho de 2020

A HORTA, de Fernando Teixeira















Tinha as mãos calejadas como qualquer homem do campo, a pele endurecida por anos a manejar enxadas, sachos e forquilhas numa faixa de terra exígua que, por esse motivo, não pedia arado mecânico ou de tracção animal.
Aquela porção de terreno era, então, o seu sustento e a sua razão de viver. Havia-a comprado após se reformar do modesto mas honrado trabalho na cidade, a fim de cultivar o que a terra pudesse dar e, fértil como era, ela dava um pouco de tudo, o suficiente para quem pouco é o bastante para sobreviver. Ficava a cerca de um quilómetro de distância da humilde casa onde vivia com a esposa de sempre, numa aldeia da Beira Baixa.
De início, deslocava-se a pé, sozinho ou na companhia da mulher, carregando o produto do seu trabalho em sacas, às costas. Avançando na idade, tinha resolvido adquirir um triciclo motorizado da Famel, cuja cabina o protegia das intempéries e do cansaço do caminho, permitindo-lhe ao mesmo tempo transportar fruta e legumes para casa, na caixa aberta do veículo. O triciclo era lento, porém, com a idade que tinha, também não precisava de se deslocar depressa, tempo era aquilo de que ele mais dispunha.
Nos meses frios, os pesados cobertores apelavam a que se deixasse ficar mais algum tempo na cama, mas no Verão o dia começava sempre bem cedo. Dirigia-se à horta de manhãzinha, ainda o sol mal ameaçava despontar, para poder dar os trabalhos por concluídos antes da canícula raiana. Ainda era noite, quando se levantava e ia colocar a cafeteira de café ao lume ou preparar uma caneca de leite com um pedaço de pão migado, que os dentes já lhe iam faltando.
Estacionado o triciclo à sombra de uma oliveira, a primeira árvore que encontrava no estreito caminho de terra batida ao sair da estrada municipal, a primeira coisa que fazia era abrir a porta de um velho barracão isolado onde guardava os utensílios da lavoura. A primeira coisa, não. A segunda! Antes, não falhava no gesto de acender um cigarro que retirava do maço meio amachucado de Português Suave, que nunca dispensava ter no bolso das calças. Puxava duas fumaças e, depois de entalar o cigarro por cima da orelha e colocar a boina, lá ia então aos seus afazeres.
Depois da construção da barragem e da implementação do sistema de regadio na região, o trabalho de rega tinha ficado simplificado. Com a enxada, ia movendo pequenos montículos de terra, aqui e ali, desviando o curso de água por diversos canais cavados no terreno, possibilitando que o precioso líquido chegasse às diferentes parcelas da horta. Enquanto esperava, novas passas eram dadas no cigarro. De vez em quando, urgia tirar a boina e voltar a ajeitá-la depois de um breve coçar da nuca.
Verificava com olhar sereno o estado das árvores de fruto, certificava-se de que nenhuma moléstia as tinha atingido, e dava um jeito nas plantas hortícolas como só ele sabia. O ar perfumava-se de aromas a fruta madura, principalmente junto das duas figueiras, cujos figos “Pingo de Mel” faziam a delícia dos sobrinhos que ele adorava, quais filhos que nunca tivera.
Cavava aqui, arrancava ervas daninhas ali, semeava acolá, colhia algumas peças de fruta, escolhia uma alface, dois ou três tomates, ou umas folhas de couve e umas vagens de feijão que a mulher houvesse pedido para a sopa… Quem o visse, andava sempre numa azáfama tranquila, sem pressas, ao ritmo das vezes que levava o cigarro à boca, deixado depois em cima de um torrão de terra até à próxima passa, até aquele não ser mais do que uma beata com a qual acendia o cigarro seguinte.
Maldito tabaco que o haveria de consumir mais do que o trabalho do campo, vício do qual se veria obrigado a largar definitivamente, alguns anos mais tarde, numa manifestação da sua força de vontade e tenacidade, embora os danos já se reflectissem no catarro, cansaço e na falta de ar que o acometia.
Já não está entre nós. Dele, ficou a saudade de muitas tardes passadas a ouvi-lo contar histórias sobre a terra e os locais, seguindo com admiração o seu raciocínio esclarecido, escutando conselhos sábios forjados pela dureza da vida, enquanto bebíamos um café ou uma cerveja, ao entardecer e à volta de uma mesa da esplanada do café da aldeia, depois de ele ter dormido a merecida sesta. Ficar-me-á, para sempre, a imagem de serenidade daquele homem de pele tisnada e mãos calejadas, ajeitando a boina depois de um breve coçar de nuca, hábito que nunca perdeu.  

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

CRÓNICA | A SEREIA, de Anita Dos Santos


Texto: Anita dos Santos

Foto: D.R.

Os remos cortavam a água de um lado e do outro do bote, calmamente ao ritmo que lhes ía imprimindo.
Não tinha pressa.
Olhou para o céu claro e sem nuvens onde brilhava uma bela lua cheia, e depois para a margem longínqua. Continuou a afastar-se. Não queria deitar a rede perto pois nos últimos dias tinha voltado vazia de peixe todas as vezes que a tinha puxado.
Não entendia o que se estava a passar. Naquela altura do ano devia haver peixe com fartura, mas este ano algo estava a afugentar o pescado.
Afastou-se mais. A margem já mal se via.
A água em volta do bote, translúcida ao cimo, tornava-se negra devido à fundura.
Deitou a rede e ficou à espera.
Acabou por passar pelo sono, as noites anteriores não tinham sido bem dormidas. Acordou com o sacudir do bote.
Endireitou-se de supetão para ir direito à rede.
Mas não lhe chegou a tocar.
Da amurada do barco, uma criatura bela, de imensos olhos verdes, fitava-o intensamente com metade do corpo submerso e os longos cabelos escorridos pela água do mar.
Ficou sem saber o que fazer.
- Olá. Naufragou? – Logo que fez a pergunta viu que era um enorme disparate.
Ela continuava com uma mão agarrada ao bote, sem tirar os olhos dele.
- Precisa de auxílio? – Outro disparate, pensou.
Sabia bem o que ela era de ouvir falar. Nunca pensou foi encontrar uma…
- Vens apanhar os pequenos com a tua rede. – A sua voz era baixa e rouca.
- Foi o que aprendi a fazer para ganhar a vida.
- É mau para nós quando vocês, os de duas penas, apanham os pequenos nas vossas redes.
- Porquê, porque é que é mau?
- Porque as redes não apanham só os pequenos. Destroem também tudo em volta quando as puxam. Matam o que levam e o que fica para trás. Porque já mataram alguns de nós.
Ele ficou sem saber que resposta lhe dar. Baixou os olhos envergonhado.
- Tens razão. Muitos homens usam redes grandes e pesadas, redes que apanham tudo e levam tudo dentro delas. Não deveria ser assim e não é isso que faço.
- A tua rede é pequena, já vi que sim. E tem malhas largas. Os muito pequenos podem fugir. De qualquer maneira não a deves deitar aqui.
- Está bem então. Podes dizer-me onde posso deitar a minha rede para apanhar peixe?
- Do outro lado do Pico Rochoso e só depois da Lua Escura.
- Do lado de lá da baía e depois da lua nova. São essas as tuas condições?
- Sim, são essas as condições.
- E se eu quiser voltar a encontrar-te? – Acabou por perguntar após um momento de silêncio.
- Virei ter contigo na próxima Lua Grande se, entretanto, ensinares aos outros que não devem vir para aqui.
- Farei isso.
A voz dele soou baixa e claramente.
Longos anos se passaram, e os pescadores tomaram outros hábitos de pesca devido aos ensinamentos do pescador.
Mas durante todas as luas cheias, se algum intrépido se aventurasse a ir para os lados do Abismo, podia ver a sombra de um pequeno bote com um pescador debruçado na amurada abraçado a uma bela sereia, que o abraçava também.