Os negócios corriam mal, era impossível continuar com o bar.
Já não se tratava de amealhar o dinheiro necessário para construir a casa na
aldeia, esse sonho estava inevitavelmente, adiado, agora tratava-se de
sobrevivência.
Tudo o que tinham estava investido no negócio, e já não havia
mais. Fechar o bar foi, com toda a certeza, a decisão mais difícil que meus
pais tomaram.
Ainda faltava pagar
algumas das letras, acordadas aquando da compra ao sócio. Este não se
encontrava no país, mas tinha nomeado um procurador que morava na capital e raramente
aparecia por aquelas bandas. Meu pai precisava urgentemente de falar com ele.
Só posso dizer o que vejo ao lembrar esse dia, que nunca vou
esquecer e que, ainda hoje, me ata com um nó a garganta.
Anoitecia. Os dois homens encontraram-se na pequena ponte
junto ao bar. Sob a luz ténue do candeeiro da rua a figura do meu pai originava
uma sombra comprida e amarelada. Sinto que nada mais existe. Não vejo a minha
mãe, vejo apenas aqueles dois homens. Um gesticula agitadamente, o meu pai
baixa a cabeça, fala baixinho. Não consigo descrever os sentimentos dele
naquela hora, mas consegui sentir o desespero que o assaltava interiormente.
Mesmo sem entender o alcance do que estava a acontecer
sentia-me apavorada, era como se o chão me fugisse debaixo dos pés! O meu pai
estava dando o negócio como liquidação de uma dívida que era muito inferior ao
valor do equipamento que havia no bar.
Depois de conversar durante algum tempo, o meu pai colocou
nas mãos daquele homem as chaves do bar, mas ele atirou-as ao chão e exigiu,
mais uma vez, o pagamento em dinheiro. Só isso lhe interessava.
Ouço o meu pai dizer “Se quiseres, a minha cabeça eu posso
dar, mas o dinheiro não, não tenho!” porém, o homem virou as costas e entrou no
carro. O meu pai ficou ali, imóvel, amargurado, olhando sem ver, o automóvel que
partia, até este desaparecer na noite escura. Naquele momento o meu pai era o
homem mais solitário do mundo.
Depois tomou a minha mão e, em silêncio, regressámos para
casa. Agora vejo a minha mãe, ela vai connosco. Aperta o peito com as mãos, chora
baixinho…
Sofreram toda a vida por não terem conseguido pagar aquela
dívida. É em momentos como este que constatamos que o destino não está nas
nossas mãos e nos fogem todas as certezas…
Já do avesso virou cada certeza
E o país que procurava não existe
Ainda não existe
Manuel
Alegre, in “Um Barco Para Ítaca”
Como o bar ainda estava
nas suas mãos, ele decidiu saldar as pequenas dívidas com peças de mobiliário.
O padeiro, um português grande, daqueles que o sol não bronzeia, mas avermelha,
que fazia a distribuição do pão porta a porta numa mota com sidecar, levou a máquina registadora; o
fornecedor de bebidas levou a "minha" Rockola…, mas não levou a maior parte
dos discos de 45 rotações, esses guardei. O senhorio ficou com tudo o que
restava.
Meu pai só vendeu a
licença de licores porque esta tinha algum valor comercial e era transmissível.
Com essa pequena quantia devia iniciar uma nova vida e sustentar a família,
sabia lá, por quanto tempo.
E numa manhã, como outras
tantas, o Bar Copacabana fechou as portas para sempre, deixando-nos do lado de
fora, ao sabor de um destino incerto.
Muitos anos depois,
passei por aquela rua. O edifício ainda existia, mas as portas do antigo bar
continuavam fechadas. As pessoas que moravam na rua não sabiam que naquele
local tinha existido um bar que se chamava Copacabana. Mais recentemente soube
que, durante as grandes inundações, muitos dos lugares onde passei a minha
infância foram sepultadas pela pedras e a terra, ou arrastados pelas águas
enfurecidas e lançados ao mar. Ficam só as memórias.
Perder o negócio foi,
para os meus pais, uma vergonha. Custava-lhes enfrentar os seus conterrâneos e
suportar a comiseração de uns e o escárnio de outros. Apenas tinham vontade de
sair daquele lugar e começar uma nova vida onde ninguém os conhecesse.
Talvez por isso foi tão
fácil aceitar a sugestão de um conterrâneo, um daqueles que tinham esquecido a
aldeia e a família, aventurando-se a ir
para o país mais profundo, onde o rio Orinoco
se cruza com o Caroní, junto à selva, onde se
escondem os tesouros da terra.
Ele falou-lhe da grande siderurgia em
construção e da cidade que se desenvolvia ao seu redor, da abundância de
trabalho e dos bons ordenados.
Então, o meu pai soube
que tinha que começar a trabalhar na construção civil e pôr em prática tudo o
que tinha aprendido com o pai.
Com uma magra quantia de
dinheiro, talvez menos do que aquela que trazia quando chegou àquele país,
decidiu partir, uma vez mais, deixando atrás a mulher e quatro filhos pequenos.
Mas agora o que o levava não era o sonho e a esperança, agora era o desalento e
a incerteza que o levavam.