Pagou a conta e saiu dali. Fez o caminho inverso até à zona de estacionamento onde tinha deixado a mota. Quando chegou, abeirou-se do guarda-corpos de cimento que protegia os peões do declive para a praia. Inspirou o ar marítimo a plenos pulmões e, quando estava prestes a virar costas ao oceano, os seus olhos pararam em dois vultos, ao longe, na extremidade sudeste da praia: do adulto, não estava certo, tinha a cabeça coberta por um capuz do que parecia ser um anorak azul-claro; já do cão bege que pululava em redor, podia quase assegurar tratar-se de um Golden Retriever.
Sentiu um sobressalto. Seria a francesa cujo pensamento o levara nessa manhã, de forma no mínimo ingénua, a deslocar-se até Le Pouldu, numa mais que provável vã tentativa de a reencontrar por acaso?
Não se iria embora sem saber. O seu gatinho teria de esperar mais algum tempo por companhia! Desceu um pequeno carreiro que levava à praia. Com tantas algas secas e outros resíduos vegetais ásperos na areia, ajuizou ser melhor não se descalçar. Aproximou-se lentamente e as dúvidas iam-se dissipando, ou talvez devesse dizer que a esperança ia aumentando. A uns vinte passos, um pé-de-vento fez soltar o capuz quando a pessoa se virou para o mar, descobrindo-lhe o cabelo grisalho encaracolado, e foi então que teve a certeza de que era mesmo ela, embora se encontrasse de perfil.
Surpreendentemente, nesse preciso momento, o cão disparou direito a ele, o que fez com que a francesa virasse a cabeça na sua direcção. Só o reconheceu quando Pedro se acercou e lhe estendeu a mão para a cumprimentar.
– Olá, boa tarde! Como vai? Pelos vistos, o Doëlan ainda se lembra de mim… – disse, afagando a cabeça do Retriever que, depois de o cheirar, tinha colocado as patas da frente à altura da sua cintura e abanava a cauda freneticamente.
Ela devolveu o cumprimento com uma expressão que espelhava curiosidade.
– É um animal muito inteligente e dócil! Não esperava vê-lo por aqui, agora… Desculpe, no outro dia saí um pouco à pressa!
– Não tem de que pedir desculpa! Compreendo que o Doëlan quisesse desaparecer da vista do veterinário o mais depressa possível…
Ela riu-se, manifestando agrado por ele ainda se lembrar do nome do seu animal de estimação.
– Dificilmente me esqueceria, eu estou a residir em Port de Doëlan.
– A sério? Ah, bom! Pensei que morasse aqui em Le Pouldu.
– Não, só vim cá com o meu gato ao veterinário.
– Sim, o Biscaya… com “y”! – exclamou a francesa, erguendo o indicador no ar, ao nível da face, e rematando num tom que acentuava a importância do pormenor.
– Isso! – devolveu ele, sorrindo com a sua atitude e, principalmente, sensibilizado por ela se lembrar, e por ter frisado o detalhe da forma que se recordava de ter proferido na clínica, à laia de imitação, como se isso revelasse um gesto de cumplicidade muito próprio. – Já que estamos a falar de nomes: Pedro.
Estendeu-lhe a mão de novo, como se um novo cumprimento fosse requerido para tornar a apresentação tão formal quanto deveria ter sido pela primeira vez.
– Sylvie – retorquiu ela, não se negando a um segundo aperto de mão e fazendo um gesto teatral. – Mas o seu sotaque é…
– Português. Sou português!
– Fala um Francês bastante fluente! – opinou, com visível agrado. – Como veio parar à Bretanha?
– É uma longa história… – respondeu, evasivo.
– Desculpe, na verdade é ousadia minha esperar que partilhe a sua vida privada com uma estranha!
– Não tem de que se desculpar! – disse, de novo. – Estranha, chega a ser a minha vida, até para mim…
Sylvie não respondeu. Notara que havia pisado uma linha que não devia ultrapassar. O seu sexto sentido percebera uma sombra cinzenta no olhar vago daquele homem, sombra que não era o reflexo do céu nublado nos seus olhos. Seria algo profundo, íntimo… O que quereria ele dizer com vida estranha?
in Traços De Pont-Aven
(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
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