Por vezes, a vida tem destas coisas: no fim daquela música, foi a vez de Miguel se afastar, ao mesmo tempo que as colunas de som começaram a debitar os primeiros acordes de piano de Bridge Over Troubled Water e ele se viu especado defronte de Matilde, enquanto os outros convivas se voltavam a unir aos pares. Era a sua oportunidade, obrigado Simon e Garfunkel!
Olhou para ela e instintivamente levantou a mão esquerda e estendeu o braço direito num convite temeroso, sem motivo porque logo ela o acompanhou nesse movimento, esboçando um ligeiro sorriso, os olhos castanhos amendoados brilhando como se também ela o desejasse, a mão dele agarrando suavemente a mão dela, sentindo-lhe os dedos finos, a outra mão tocando-lhe ao de leve na graciosa cintura. Ensaiou uns passos, receoso de a pisar, não queria dar uma má imagem de si e estragar tudo na primeira oportunidade de a poder sentir nos seus braços, caída dos céus. E ao som do piano, qual ponte sobre as águas revoltas da sua angústia de minutos atrás, foram-se movendo delicadamente, ele atrevendo-se a olhá-la nos olhos, a espaços e de relance, numa cumplicidade nova, ela retribuindo, a mão esquerda sobre o ombro dele, toque dissipador de todas as dúvidas, if you need a friend, I’m sailing right behind…
A música estava a terminar e ele questionou-se sobre o que se seguiria, o que fariam depois daquele momento, para si arrebatador. Iam afastar-se um do outro, quando novos acordes do mesmo duo, agora de guitarra, lhes suspendeu o movimento. As mãos não se chegaram a separar e ele voltou a puxá-la gentilmente pela cintura. Are you going to Scarborough Fair? Sim, com ela iria a qualquer lado, em novo momento de enlevo nos seus braços, bendita a hora em que tinha aceitado a sugestão do Miguel, onde estava o outro?, não lhe interessava saber, já não lhe guardava ciúme, porquanto Matilde agora era sua enquanto ela quisesse.
Para seu júbilo, sentiu-a puxar a mão mais de encontro ao braço de ambos e entrelaçar os dedos por entre os dedos da sua mão, ao mesmo tempo que se chegava mais a si. A melodia convidava a passos cada vez mais ténues e ele sentia, extasiado, o perfume daquele cabelo ondulado, então tornado aroma de salsa, sálvia, alecrim e tomilho…
Henrique, de serviço no gira-discos, continuava numa toada de slows, para satisfação dos pares que se tinham então formado. Seguiu-se a voz de John Lennon, num LP recente que o pai tinha trazido de Inglaterra. Imagine era a canção que mantinha o par Pedro e Matilde junto, como se fosse já a coisa mais natural do mundo, naquela tarde graciosamente amena de Novembro. E ele imaginou também um mundo muito melhor quando Matilde largou a sua mão e passou os dois braços em torno do seu pescoço. Radiante, numa felicidade contida, Pedro cingiu a cintura dela com os seus, unindo os dois corpos num balancear cada vez mais reduzido. Sentiam a respiração um do outro, tranquila a dela, mais nervosa a sua. Temia que as hormonas o traíssem e a excitação do contacto físico o denunciasse, levando a que ela se pudesse sentir melindrada e ofendida.
Quando alguém se lembrou de colocar a tocar o tema Unchained Melody, um êxito de 1965 interpretado pelo duo The Righteous Brothers, Pedro e Matilde já não moviam os pés, limitando-se a menear a cintura de forma quase imperceptível, concentrados na música e em si próprios. Ele atreveu-se a fazer pequenos movimentos com a mão, afagando-lhe a cintura e as costas, vendo agradado que ela retribuía o carinho, acariciando-lhe os ombros. Já não era o rapaz ciumento de quando a vira a dançar com o Miguel, mas alguém cheio de confiança no momento que vivia. Com a face encostada à face dela, tão macia como algodão, não se conteve e segredou-lhe ao ouvido:
– Gosto tanto de ti, Matilde…
Viu-a afastar o rosto, os olhos humedecidos suspensos num instante de fixação nos seus. Ele mal teve tempo de esboçar um sorriso embaraçado: sentiu-a segurar-lhe o rosto com as duas mãos e devagar chegar os lábios dela aos seus, num beijo doce.
Ele correspondeu algo atabalhoadamente, meio surpreso pela espontaneidade dela, meio aturdido pela repentina conquista. Quando as bocas se separaram, foi ele quem a procurou de novo com a avidez dos seus dezoito anos, querendo mais, desejando repetir a sensação de entrega e de paixão. Fechou os olhos e abandonou-se naqueles lábios que se entreabriam de novo para o receber. Era ele agora que lhe amparava o rosto, com as mãos enfiadas no cabelo ondulado, enquanto ela o cingia pela cintura. Tudo se resumia àquele momento, como se tudo à sua volta se tivesse silenciado ou desaparecido, deixando-os numa redoma onde só eles se encontravam, duas bocas e dois corpos fundidos num terno abraço… Oh, my love, my darling, I’ve hungered, hungered for your touch… I need your love, I need your love…
in Traços De Pont-Aven
(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)
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