sábado, 14 de novembro de 2020

A MULHER DO PESCADOR, de Fernando Teixeira

 







Acordou, sobressaltada, com o toque do telefone fixo que o marido insistia em manter em casa. De relance, olhou para o relógio sobre a mesa-de-cabeceira e viu a indicação 4:15 no mostrador. Sylvie saiu da cama, estremunhada, e dirigiu-se à parede entre a cozinha e a sala de estar, onde o telefone estava pendurado, sentindo o coração acelerar.

Trémula, pegou no telefone, retirando-o da base:

Allô?

Do outro lado, a resposta demorou um par de segundos, até que ouviu dizer:

– Sylvie, houve um acidente com o Étoile de Mer… tens de vir aqui!

Apesar de assarapantada, percebeu que era a voz de Alain, um dos responsáveis da Coopérative Maritime, quem lhe ligava a meio da noite, por sinal um amigo deles. Sentiu um baque. O nome Étoile de Mer ecoava na sua mente: o barco do marido, estrela-do-mar como ele a costumava tratar carinhosamente.

– Acidente? Como assim? O que aconteceu? – perguntou, sentindo um nó na garganta.

– Ainda não sabemos ao certo. Parece que alguém se feriu a bordo… Recebemos um SOS, via rádio.

Então mais desperta, teve a percepção de que o interlocutor deveria saber mais do que estava a contar, o que a deixou numa aflição.

– Por que motivo me estão a ligar? Alain, aconteceu alguma coisa ao Jacques?

– Tens de vir, Sylvie…

Desligou o telefone, apressou-se a vestir o anorak e saiu de casa. Não se sentia capaz de conduzir, traída pelos nervos, pelo que decidiu percorrer a pé os cerca de quatrocentos metros que a separavam da Coopérative. A noite estava escura como breu e caía uma morrinha, açoitada por vento forte. A espaços, o clarão de um relâmpago rasgava os céus seguido do ribombar de um trovão a alguma distância, para o lado do mar. Inclinou o corpo para a frente, de modo a contrariar a força do vento e conseguir avançar.

As gotículas de chuva misturavam-se com as lágrimas que não conseguia segurar. Para a chamarem a meio da noite, tinha de ter acontecido algo grave, dando razão ao pressentimento que tivera nessa tarde. Com aquele vendaval, o mar do golfo deveria estar com vagas enormes… Teria ocorrido um naufrágio? Nesse caso, ter-se-ia o marido e os restantes homens do Étoile de Mer conseguido salvar? Receava o pior! O certo é que tinha havido um pedido de socorro para terra e alguém o teria feito. Jacques, como dono e responsável pelo barco? Qualquer um dos outros quatro pescadores?

Sentia perder as forças nas pernas, todo o corpo num tremor e não era de frio por ter já as calças ensopadas: com a precipitação de sair, nem se lembrara de pegar num chapéu-de-chuva. Um nó na garganta dificultava-lhe a respiração, mas ia-se esforçando por pôr um pé à frente do outro, lutando contra as rajadas de vento e o esvaziamento anímico.

Finalmente, chegou à Coopérative Maritime. A porta estava entreaberta e havia luz no interior, o que só por si, àquela hora, era sinal de que algo de anormal se passava.

Entrou. Assim que a viu, Alain veio ter com ela e abraçou-a.

– O teu marido… Lamento, Sylvie! – ouviu-o dizer, com a voz embargada.

Afastou-o com as mãos e recuou um passo.

– O que é que lamentas, Alain? Explica-te! – exigiu, alterada, como que esperando que a resposta ainda pudesse ser diferente daquilo que parecia ser cada vez mais óbvio: algo muito grave tinha acontecido a Jacques.

O outro manteve a serenidade possível e, com voz pausada, informou:

– Às duas e meia da manhã, recebemos um SOS do Étoile de Mer. Disseram que estavam em dificuldades, que as condições do tempo se tinham agravado e que se tinham visto no meio de um temporal a vinte milhas náuticas daqui, algures entre a ilha de Groix e Quiberon. O mar estava cavado e o vento era muito forte. Estavam a tentar recolher a rede de emalhar. O Jacques tinha largado o leme e dirigia-se para ajudar os outros, quando um golpe de mar quase ia virando o barco. Ele não se conseguiu segurar a tempo e foi atirado com violência contra o guincho.

Suspendeu o relato por um segundo interminável, como que para a preparar.

– A pancada na cabeça foi fatal, Sylvie… Os companheiros não o conseguiram reanimar, lamento muito dizê-lo!

Ela sentiu o chão fugir-lhe dos pés. Vendo-a empalidecer, quase desfalecendo, Alain amparou a amiga, conduzindo-a a uma cadeira onde a sentou. Pediu a um outro homem que lhe trouxesse um copo com água e açúcar. Agachado à sua frente, foi segurando as mãos de Sylvie que se mantinha recostada, com a cabeça inclinada para trás e os olhos atónitos fixos no vazio.

 

in Traços De Pont-Aven

 

(O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)

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