Prólogo
A Lista de Leitura
2017
As portas são novas: abrem-se automaticamente. São elegantes. Aí está uma coisa que mudou desde a última vez que Aidan ali esteve. A primeira coisa em que ele repara são as filas esparsas de livros — quando era mais novo, mais pequeno, as prateleiras pareciam não ter fim, cheias de livros de todas as formas e tamanhos. Mesmo quando ali trabalhou, numas férias de verão durante a sua adolescência, aquele espaço era um santuário para ele e, embora nunca o tivesse admitido aos amigos, adorava perder-se entre as pilhas e pilhas de dicionários, enciclopédias e outras obras de referência. Talvez esteja apenas a olhar para o passado através de lentes cor-de-rosa, imaginando algum tipo de país dos livros, maravilhoso e mágico, que nunca existiu realmente. Agora, porém, com 22 anos, já não é um rapaz, mas sim um homem, e ali está ele novamente à procura de um lugar para se esconder — do mundo, dos amigos, da família.
O bibliotecário levanta os olhos por breves instantes quando ele entra pelas portas e sorri. Aidan é saudado pelo silêncio. Nas suas memórias, aquele lugar nunca era silencioso. Obviamente, isto é uma biblioteca… por isso, sempre foi um local tranquilo, mas também havia aquele ruído surdo — de pessoas a remexerem-se, de crianças a sussurrarem às mães, de pessoas a virarem páginas, a moverem cadeiras, a abanarem-se, a tossicarem e a fungarem. Hoje, mal se ouve um som. Alguém a escrever uma mensagem de texto no telemóvel. O bibliotecário a bater nas teclas daquele teclado velho e desajeitado. Mais nada. Há pouco tempo, vira alguns cartazes onde se lia que era preciso salvar as bibliotecas de Brent afixados em quadros comunitários: no supermercado Tesco, no ginásio, até mesmo colados perto da estação de metro, a anunciar vendas de bolos para angariar verbas, clubes de tricô na biblioteca, protestos passivos, petições. Mas nunca lhe passou pela cabeça que a Biblioteca de Harrow Road precisasse de ser salva. Na sua mente, é popular, acarinhada, mas agora que ali está, o seu coração começa a cair-lhe aos pés… talvez a Biblioteca de Harrow Road seja a próxima a desaparecer.
Vagueia até às prateleiras da ficção, à secção dos policiais e thrillers e passa os dedos pelas lombadas, aterrando em Black Water Rising, de Attica Locke. Já leu aquele livro há alguns anos. Talvez até mais de uma vez. Quando começa a virar as páginas, à procura de um escape, é invadido pelas memórias… da Houston de Attica Locke, a cidade viva, vibrante, escura, cheia de contradições e contrastes. Hoje, ele precisa desse tipo de familiaridade, precisa de regressar a um mundo onde há sustos, voltas e reviravoltas, mas um mundo onde ele sabe como tudo vai acabar.
Ele precisa de saber de que forma alguma coisa vai acabar.
A mesa em que se aninhava quando era pequeno já não existe, o espaço foi todo reorganizado. Nada se vai manter igual só para lhe agradar, não aqui, não na sua vida. Este é outro verão mau. Porém, à medida que as palavras da história o invadem, ele traça as frases com os dedos, tentando recriar aquela sensação de ter os pés assentes na terra, de estar enraizado num sítio, de ser apenas um corpo, a ler palavras, permitindo que a sua mente vagueie por outras paragens. Consegue sentir a história a assumir o controlo da sua mente, a puxá-lo para longe. Os seus próprios pensamentos, as suas preocupações, aquela voz, começam a zumbir no fundo da sua mente e acabam por se tornar apenas ruído branco.
Quando era mais novo, a mãe levava-o ali com a irmã mais nova, Aleisha, que estava sempre mais interessada em brincar e dava pontapés e fazia barulho, pelo que Leilah tinha de a levar para a rua. Aidan nunca dispunha de mais do que alguns minutos sozinho, mas esses poucos minutos acalmavam-no, abrandavam o ritmo frenético dos seus pensamentos, ajudavam-no a respirar, a escapar… àquilo de que mais precisasse naquele momento.
Um sonoro Bam! alerta-o para a presença de alguém ao seu lado. Evita o olhar dessa pessoa, mantendo os olhos cravados na página, já que não quer, por enquanto, permitir que alguém quebre o seu feitiço. Pelo canto do olho, vê um grande monte de livros empilhados. Uma barricada.
Ouve o barulho de uma cadeira a raspar no chão e pedaços de papel a serem retirados de dentro de uma mala, recibos amachucados, um talão da biblioteca, o verso de umas palavras cruzadas, deixando uma nuvem branca e amarrotada em cima da mesa ao seu lado.
Ele esforça-se por acalmar a respiração enquanto a pessoa ao seu lado começa a murmurar de forma quase inaudível. Não consegue perceber se se trata de uma canção, uma melodia ou um completo disparate. Vê uma caneta posicionada em cima do primeiro pedaço de papel; depois, segue os rabiscos rítmicos de uma esferográfica.
Aidan não tira os olhos da página, passando por cima das palavras do livro, acolhendo-as, tentando invocar a sensação que tivera da última vez que lera aquelas palavras por aquela ordem.
Durante alguns minutos, Aidan permite que a sua concentração entre e saia das páginas do livro, da biblioteca, e que depois avance para a estrada, viajando até Wembley. Pergunta-se como estará a sua mãe naquele momento. Teria Aleisha reparado que ele desapareceu? Puxa a sua mente de volta à sala, de volta à biblioteca, à pessoa sentada ao seu lado, rabiscando como se a sua vida dependesse disso.
Então, de repente, a pessoa ao seu lado levanta-se abruptamente, deixando um monte de pequenos pedaços de papel dobrados a poluírem a mesa. Ele observa, pelo canto do olho, os pedaços de papel a serem organizados numa fila, como se em câmara lenta, e um dedo a batucar em cada um deles à vez… a contar um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito… Depois, os pedaços de papel são todos enfiados dentro do primeiro livro da pilha — ele vê agora que é Mataram a Cotovia.
As mãos da pessoa ao seu lado ficam pousadas na capa do livro por breves instantes. Aidan percebe que não vira a sua página há já algum tempo. Pergunta-se se a pessoa percebe que ele está a observá-la. Pergunta-se porque é que o faz, na verdade. Então, logo de seguida, os braços da pessoa, embrulhados numa camisola preta de malha grossa, estendem-se para a frente e puxam os livros para si. Com um gemido baixinho, a pilha de livros desaparece da sua visão periférica e ele ouve sapatos a raspar na carpete gasta da biblioteca, a moverem-se em direção à receção. Finalmente, a sua mente pode regressar à história.
Quando, por fim, se levanta da cadeira, a luz do final do dia já entra pela janela e a biblioteca está tal e qual como ele se lembrava: mágica. Parece um milagre, mas ele nunca acreditou nessas coisas. O sol projeta sombras alongadas na biblioteca desalinhada, banhando tudo num âmbar quente — parece que foi esculpido em ouro. Arruma a cadeira, levantando-a para não fazer barulho — embora já quase não se encontre ninguém que ele possa perturbar.
Então, vê um pedaço de papel solitário dobrado na mesa ao seu lado — as palavras cruzadas.
Vira a cabeça para a esquerda, para a direita e, lentamente, espreita por cima do ombro. Ninguém o está a observar. O seu braço estica-se, puxando o papel para si e, depois, desenrola-o — uma dobra de cada vez. Os seus dedos tratam o papel, pouco mais grosso do que uma mortalha, com delicadeza. Não o quer rasgar. Pensa na pessoa que ali esteve, que se manteve no anonimato, a escrever, a rabiscar, concentrada.
Quando desdobrou a última prega, o mistério foi subitamente revelado. A letra é elegante, ondulada, quente e convidativa.
Só para o caso de precisares: Mataram a Cotovia; Rebecca; O Menino de Cabul; A Vida de Pi; Orgulho e Preconceito; Mulherzinhas; Beloved; Um Bom Partido.
Mataram a Cotovia — o primeiro livro do monte enorme. O seu olhar percorre a lista toda. Não significa nada para ele — apenas palavras rabiscadas em pedaços de papel. Contudo, por breves instantes, ele pensa em levar a lista com ele, enfiando-a no bolso. Mas detém-se. Aquele pequeno pedaço de papel, tão bem dobrado, nada mais é do que a lista de leitura de um estranho. Para que é que ele precisa de uma coisa dessas?
Em vez de a guardar para si, volta a pô-la em cima da mesa e decide arrumar o seu livro, agradecendo secretamente a Attica Locke, e volta a colocá-lo na prateleira dos policiais e thrillers, para que outra pessoa o aprecie. Sai da biblioteca, as portas fecham-se automaticamente atrás dele. Volta-se uma vez mais e consegue ver o bilhete pousado exatamente onde o deixou. As sombras da biblioteca fecham-se atrás de si; os livros lidos e não lidos formam uma barreira entre ele e a lista. À medida que se afasta da biblioteca, sente a paz e o silêncio a afastarem-se dele, enquanto se dirige para as luzes e para os sons da cidade a que chama casa.