quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

DIVULGAÇÃO | A RAPARIGA POLACA, de MALKA ADLER | TOPSELLER

 

Prólogo

O mais difícil foi quando os russos entraram em Cracóvia.

Aconteceu no final da guerra, depois de o Dr. Helmutt Sopp ter saído da casa. Foi viver para onde trabalhava, no hospital de Cracóvia. A mamã disse que era o melhor para o professor, e que os bons velhos tempos dos nazis tinham chegado ao fim, tal como um filme de terror. A mamã dizia que Helmutt Sopp era professor, mas, a julgar pelo seu diploma, era apenas um médico. Psiquiatra e oficial nazi no exército de Hitler, mas não era professor. Constatei-o nas cartas que enviou à mamã depois da guerra, quando vivíamos em Haifa. Nos envelopes, vinha escrito:

dr. helmutt sopp

De resto, ouvia as pessoas a tratá-lo por Herr Doktor quando ainda vivíamos com ele. Para nós, ele era o grande salvador. Era o responsável pela mamã em Cracóvia. Para mim, era alto, bonito e um bom homem.

A mamã foi governanta da família Sopp durante dois anos. Contrataram-na graças a documentos especiais obtidos por Lydia, sua irmã mais velha. A mamã manteve o nome Anna e mudou apenas o apelido para Kwiatkowski, um nome polaco que podia salvar judeus da morte. Graças aos documentos de Lydia e ao facto de a mamã trabalhar para a família Sopp, conseguimos ficar num pequeno quarto onde podíamos viver sem medo do destino cruel que nos espreitava todos os dias, a todas as horas, ano após ano.

Quando soubemos que os russos estavam a aproximar-se de Cracóvia, novas instruções começaram a chegar à casa da família Sopp na cidade. Toni, a mulher de Helmutt, e os seus filhos, Peter e Ammon,  partiram para a Alemanha tal como lhes foi dito que fizessem. Nós permanecemos na casa com Helmutt Sopp durante mais uma ou duas semanas, mas logo a seguir, por causa da nova situação, como disse a mamã, Helmutt também saiu de casa e foi viver para o hospital.

Ficámos sozinhos na mansão luxuosa, sem as festas habituais e sem a proteção de Helmutt e Toni Sopp, até que foi anunciado pela rádio que a guerra tinha acabado.

Um dia — estávamos em fevereiro —, chegaram os senhorios polacos. Foi depois da libertação, quando os russos já tinham ocupado as ruas de Cracóvia, caídos de bêbedos ou a dançar a kazachok1 como loucos. Os senhorios disseram à mamã que aquela casa lhes pertencia e que havia papéis que o  comprovavam. Permitiram-nos ficar até ela tratar de todos os preparativos. A mamã agradeceu e avisou-nos com o olhar para irmos para o quarto e que fizéssemos silêncio. Os novos senhorios, um homem, a sua mulher e uma filha mais velha do que eu, ocuparam imediatamente uma ala. Eu, a mamã e o meu irmão, que era um ano e pouco mais novo do que eu, desaparecemos no quarto dos criados que ficava ao lado da cozinha.

Eu tinha 8 anos e dava pela maçaneta da porta, alta e esguia. 

O Yashu tinha uns 7 anos, e a mamã, 40, bonita como sempre.

Um dia, ouvi a rapariga polaca perguntar ao pai:

— Como se escreve «alemão», com letra maiúscula ou minúscula?

— Escrevemos todos os povos com letra maiúscula, minha filha — disse ele —, menos os judeus. «Judeu» é com letra minúscula.

— Obrigada, pai — agradeceu a rapariga educadamente, e continuou a escrever no seu caderno.

Lembro-me de perceber naquele momento que todos os povos, sem exceção, eram meus inimigos, mesmo que a guerra tivesse acabado, como apregoavam por toda a parte. Bem, Danusha, voltaste a não valer nada, disse a mim mesma.

Percebi também que havia um mundo de muitas nações e que eu estava do outro lado, onde tinha de me esconder. E, acima de tudo, percebi que eu e a minha mãe nos escrevíamos com letra minúscula, que não contávamos para nada.

Senti-me mal por isso. Desta vez, senti-me absolutamente indigna, e isso entupia-me o nariz e ardia-me na garganta. Nem sequer o espelho que adorava me fazia sentir melhor. Eu era uma criança muito calada e educada, com olhos azuis e cabelo acobreado; tão bonita, ouvia amiúde. Mas sentia-me mal ao lado da rapariga polaca, e não ajudava que, com 6 anos, já conseguisse ler em duas línguas, e não ajudava que Frau von Dorf, a professora de piano em Bad Pyrmont, dissesse que eu era muito musical. 

Se bem me lembro, tudo começou na nossa pequena família. Só o papá ficou contente quando nasci, mas ele desapareceu quando fiz 5 anos, e se a mamã dizia que as raparigas não tinham importância, era isso que contava.

Uma boa mãe sonha com um filho primogénito, não com uma filha. Acreditava que teria um filho  primogénito parecido com um oficial polaco de posição, digno da sua família de antes da guerra. Disse às irmãs que o primogénito seria muito alto e bonito, não um Hassid, um académico, como o avô. A mamã queria um filho que montasse um cavalo nobre, como aquele que tinha visto no seu sonho, aquele sobre o qual sussurrava com as quatro irmãs na sala de estar. Aharon, o irmão mais novo, desapareceu na guerra. Mas qual era o sexo mais forte naqueles tempos, qual? Os homens esconderam-se ou desapareceram no fumo ou no vento, e as mulheres sobreviveram. Quem derrotou a mamã? Ninguém. Nem a ela, nem às suas quatro irmãs, fortes como o Rochedo de Gibraltar.

Eu era a primogénita de um pai que era um comerciante da Galícia Oriental, não um advogado de Lódz como o marido da minha tia Franca, e neta da avó Rosa, que estava muito mais satisfeita com o  advogado de Lódz. A avó Rosa não gostava muito de mim. Senti-o quando a visitei em Cracóvia e  brinquei com os meus primos. Senti que eles, os filhos do advogado de Lódz, eram os mais bem-sucedidos.

Quando o senhorio polaco disse à filha que só żyd2 se escrevia com letra minúscula, e que todos os outros povos tinham direito a uma letra maiúscula, percebi imediatamente que, para mim, a guerra não tinha acabado com a entrada dos russos em Cracóvia.

E foi isso que aconteceu.

Nem tudo foi mau durante a guerra.

Talvez fosse por ser pequena, com apenas 2 anos, quando tudo começou.

Quando tinha 3, 4 e 5 anos, e mais tarde também, houve momentos bons. A mamã costumava cantar árias e trechos de ópera logo de manhã, e eu implorava sempre por mais. Não queria que aquelas melodias tivessem fim. Viajámos entre cidades, conhecemos boas pessoas e não nos esqueçamos do jardim tirolês desenhado nos sofás no meio da sala de estar daquele monstro, Josef Wirth.

Houve o bonito Helmutt Sopp, a divertida Toni, vestidos limpos para usar e fitas no cabelo a condizer. Na casa grande da família Sopp havia boa comida, o cheiro das especiarias na cozinha, e «Frau Anna, es schmeckt gut — delicioso». Houve os rapazes simpáticos, Peter e Ammon, uma vitrola na sala de estar e uma pilha de discos; houve pãezinhos frescos, bolos maravilhosos e gelados, como nos filmes. Houve o jornal Die Zeitung. Aprendi a ler sozinha, e houve livros lindos e convidados importantes em mesas elegantes. Houve bebidas, iguarias e muitas gargalhadas. Houve também um licor invulgar, uma especialidade da mamã, e cantorias maravilhosas dos homens, Oh, Wisła, Wisła. A mamã corava.

— Sabia que o apelido Kwiatkowski significa flores em alemão? — diziam-lhe, e ela ficava orgulhosa do seu apelido novo.

No pequeno quarto, contíguo à cozinha, havia uma janela com vista para o pátio, onde estava uma árvore lilás com ramos carregados de flores cujo aroma me prendia à janela horas a fio.

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